“O avesso da pele”, de Jeferson Tenório

Se, por um lado, este romance tem um texto com traços líricos e poéticos, por outro, possui, também, um lado urgente, uma vez que se debruça sobre temas como a busca de identidade, o conceito de negritude, o racismo, a violência polícial, os dramas famíliares e o estado do ensino público na cidade de Porto Alegre, o que nos desloca para fora do eixo Rio de Janeiro e São Paulo. Jeferson Tenório usa, como ponto de partida, uma tragédia que envolve o pai do protagonista, o  que me faz relembrar uma inspiração shakesperiana. Sem dúvida, este é uma das minhas melhores leituras de 2020. Esta obra teve direitos vendidos para o cinema e comprados pela RT Features.

\”Há nos objetos memórias de você, mas pareve que tudo o que restou deles me agride ou me conforta, porque são sobras de afeto. Em silêncio. esses mesmos objetos me contam sobre você. com eles que te invento e te recupero.\” — Jeferson Tenório

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Fonte: Companhia das Letras

Como seres humanos que somos, quando perdemos algo ou, neste caso, alguém, ainda mais quando é o nosso pai, acabamos por ficar sem chão. É a partir desta sensação devastadora que o autor nos apresenta o protagonista Pedro. No início da trama, ele regressa ao apartamento de Henrique, o seu pai, depois deste ter sido brutalmente assassinado, para começar a reconstruir as suas próprias memórias, as memórias do pai, que era professor de literatura, recorrendo aos objetos que este deixou, de Martha, a sua mãe, e da restante família.

Com um toque de romance de formação, vamos acomopanhando a infância traumática de Henrique, marcada por várias abordagens políciais, pelo julgamento constante que fazem dele, tendo a sua cor de pele como base para desferir todo o tipo de ataques e, consequentemente, a marginalização que ele sofre e que vinca o racismo estrutural presente em toda a sociedade de Porto Alegre, que é considerada uma metrópole bastante racista.

Vemos esse tipo de comportamentos se manifestarem, de várias formas, durante a fase em que era criança, quando as pessoas brancas, incluindo a polícia, tinham receio de se aproximar dele e diziam que ele “não era um cara tão legal”, durante a adolescência, quando a familia branca da namorada o bombardeia com ofensas e piadas sobre a sua raça e, na vida adulta, quando percebem que é o único professor negro que dá aulas naquela escola.

\”No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco.\” — Jeferson Tenório

No que diz respeito a Martha, a mãe superprotetora de Pedro, ao longo do romance, vamos nos apercebendo que ela foi adotada por uma família brança, ainda numa tenra idade, o que fez com que ela ganhasse imensas inseguranças. Adicionalmente, assistimos a uma \”objetificação\” da mulher. Qundo ela descobre que é negra, o narrador diz-nos:

\”Antes, ela era Martha ou Marthinha. Agora, depois de uma simples pergunta, ela passara a ser Martha e negra. A pele fora nomeada, a existência ganhara sobrenome.\” — Jeferson Tenório

Como se isso já não suficiente, temos relacionamento abusivo que invade a sua complicada existência, sobretudo, numa fase em que ela entra na adolescência e começam as mudanças corporais e, ainda, à questão da servidão de que é vítima por parte da sogra. 

Neste livro, temos alguns traços autobiográficos, desde a deslocação do Rio de Janeiro para Porto Alegre, a questão do abandono em tenra idade e a ausência de um dos pais, as abordagens policiais, a profissão que, tal como o autor, é um professor de literatura, ou seja, por outras palavras, todas estas vivências foram sentidas na pele pelo próprio autor e, para mim, isso só aumenta ainda mais a credibilidade daquilo que ele nos narra.

Na minha opinião, um dos pontos altos desta história é a forma como Tenório nos conduz por ela, através da utilização de várias vozes narrativas. Numa primeira camada, a narrativa de Pedro, um estudante de Arquitetura, de 22 anos, chega até ao leitor em primeira pessoa. Depois, todos os acontecimentos relacionados com o pai surgem num falso modo de 2ª pessoa. Isto porque, quando Pedro utiliza o termo \”você\” não o faz para se dirigir ao leitor mas a Henrique, ainda que ele não lhe responda e assuma um papel de personagem ausente. Quanto aos eventos relacionados com Martha, eles são nos transmitidos na 3ª pessoa. 

\”É necessário preservar o avesso, você me disse. Preservar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina o nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.\” — Jeferson Tenório

Por fim, em jeito de conclusão, acho que seria muito bom, quer pela temática bastante atual, quer pela urgência em debater o tema do racismo em todas as suas vertentes, ver alguma editora portuguesa a editar esta magnífica peça de ficção.

Foto: Jeferson Tenório por Carlos Macedo

Sobre o autor:
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é doutorando em teoria literária pela PUCRS. Estreou-se na literatura com o romance “O Beijo na Parede” (2013), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. É autor também de “Estela sem Deus” (2018). “O Avesso da Pele” é a sua estreia na Companhia das Letras.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes no Brasil:
\”O Avesso da Pele\”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/o-avesso-da-pele-1-ed-2020/artigo/34ae205b-6f7e-47f2-9122-d782c94e26f3

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Boas leituras!

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