Trago-vos, hoje a segunda parte do post que publiquei ontem, motivado pela polémica que está a ser gerada à volta das escolha dos tradutores que vão trabalhar o brilhante poema escrito e recitado pela Amanda Gorman, aquando da tomada de posse de Joe Biden.
“As pessoas brancas fazem as coisas à sua maneira para as pessoas brancas, porque imaginam que os negros não vão ler, por não terem educação ou não terem meios para comprar livros, logo, só dão voz ao tradutor branco.” — Gisela Casimiro, escritora guineense
Voltemos para o ponto de vista defendido por Gisela Casimiro. A escritora analisa:
“Parte-se do princípio de que os portugueses lêem pouco, que as minorias ainda devem ler menos, e daí concluiu-se que é indiferente quem traduz. Não é. Se as editoras não conhecem um tradutor negro, será que se dão sequer ao trabalho de perguntar a alguém se conhece? Será que se lembraram algum dia de abrir uma call para que pessoas de todos os tipos pudessem concorrer? Se os tradutores não são trabalhadores fixos das editoras, e são contratados por cada trabalho, porque é que um negro não é chamado ou não tem oportunidade de concorrer?”
Neste argumento, a apontar para a igualdade de oportunidades, Pedro Mexia converge:
“Claro que há domínios com sub-representação de grupos étnicos minoritários ou outros. Parece-me uma evidência. Portanto, se a questão é ‘porque é que não deram o poema a um tradutor negro?’, pondo-se o assunto do ponto de vista da igualdade de oportunidades, a reclamação é totalmente justa. Outra coisa é sugerir um imperativo: só um tradutor negro é que pode traduzir este poema. Parece-me absurdo. Dizer que uma pessoa não pode traduzir alguém que é completamente diferente dela, do ponto de vista da identidade, significa em última análise que essa pessoa também não pode ler, ou pelo menos não pode ler bem, um autor com identidade diferente. E se assim fosse eu não poderia ler James Baldwin, porque a minha experiência de vida não tem nada a ver com a dele. Ora, uma das funções da literatura é precisamente pôr-nos em contacto com opiniões, vidas e experiências diferentes.” — Pedro Mexia, cronista, crítico literário, tradutor e poeta português
É fácil de constatar que Gisela Casimiro não disputa a universalidade da literatura e deste poema em particular. Diria mesmo que não sustenta que negros ou, por exemplo, pessoas deficientes “tenham de ser traduzidos, revistos ou ilustrados por pessoas com essas mesmas características.”. Ela indigna-se com quem, a seu ver, não identifica na escolha de uma tradutora branca uma perpetuação de desigualdades.
“As pessoas negras também têm formação, também estudam, também têm competências, são capazes, são profissionais, simplesmente são invisibilizadas. Para os que são como Amanda Gorman, que se olham ao espelho e têm uma cor de pele semelhante à de Amanda Gorman, que têm familiares ou que elas próprias passaram por situações como as que ela apresenta no poema, faz muita diferença ter o poema traduzido por uma negra e não estamos a fazer um bom serviço se depois à primeira oportunidade arranjamos o primeiro tradutor que nos vem à cabeça.” — Gisela Casimiro, escritora guineense
Das muitas perguntas que este tema desperta, mais aquelas que são apresentadas pelos cinco escritores-tradutores que falaram com o Observador, há uma que merece especial atenção: o que é que o caso Amando Gorman nos diz sobre a interpretação que é feita do trabalho de um tradutor? O que é, afinal, traduzir?
“Traduzir é ir ao encontro da diferença, ir além das fronteiras e das barreiras, estabelecer um diálogo onde não havia um diálogo. O que interessa é a minha competência linguística e cultural.” — Tânia Ganho, autora e tradutora portuguesa
Responde Salvato Teles Menezes, que já verteu “muitas dezenas de livros” do inglês, do espanhol e do francês:
“O tradutor tem de entender o contexto cultural e a identidade do autor e por isso mesmo é de toda a conveniência, antes de iniciar a tradução, procurar informar-se devidamente sobre o ambiente cultural e as características subjacentes à própria construção do texto. Isso requer estudo, investigação e preocupação em ser rigoroso. Quem for sério neste trabalho, desenvolve previamente todos os esforços ao seu alcance poder abordar o texto que tem perante si e para encontrar as soluções que permitam ao leitor perceber o original. Já traduzi vários autores negros, Ralph Ellison, por exemplo, e tanto quanto a minha consciência permite avaliar fui sempre competente na transmissão dos valores identitários plasmados nessas obras.” — Salvato Teles de Menezes, tradutor português
Tânia Ganho, tradutora de Agatha Christie, David Lodge, Maya Angelou, Angela Davies, Alice Walker, Alan Hollinghurst, Elif Şafak, Leïla Slimani, tantos outros, acrescenta:
“Para ser tradutora, preciso de dominar duas culturas, duas línguas, e o que vou fazer é a ponte entre uma e outra, precisamente para levar um autor e uma obra a um espaço onde esse autor e essa obra não seriam entendidos sem o meu papel de tradutora. O que interessa é a minha competência linguística e cultural. Aliás, a tradução não é uma transposição fidedigna do original, é outra obra de arte, outro produto criativo, com marcas pessoais do tradutor.” — Tânia Ganho, autora e tradutora portuguesa
Gisela Casimiro parece reforçar a mesma ideia, ainda que conduza o tema para um caminho provavelmente menos óbvio para quem não seja negro. Afirma que “isto não tem só a ver com a capacidade do tradutor”, até porque “não é uma questão de quotas, de ter de ser dar a tradução a uma pessoa negra para ocupar uma quota”. “Quero, sim, que se pergunte porque é que nas editoras as equipas não têm pessoas negras que possam também ser consultadas e porque é que não se chama um tradutor negro.”
Mas a probabilidade de o poema ser traduzido por um branco é altíssima por estarmos na Europa? Tal como num país africano seria altíssima a probabilidade de um poema de um branco ser traduzido por um negro? Gisela Casimiro não discorda e lança perguntas sob a forma de desafios:
“Mas na Europa não existem tradutores negros? Onde é que eles estão? São sequer considerados? A estrutura de todas as editoras em Portugal, por exemplo, tem diversidade? Não estou só a falar de pessoas negras, mas também de pessoas de outras nacionalidades, porque elas vivem em Portugal.” — Gisela Casimiro, escritora guineense
É igualmente questionar se a competência cultural o tradutor não será tanto maior quanto ele partilhe afinidades identitárias com o autor. Será, certamente, no dizer de Gisela Casimiro. “Escrevo poemas sobre vários temas, com que qualquer pessoa se pode identificar, e quem ler não saberá de que cor sou. Agora, há muitas coisas em que, sendo negra, se ler numa tradução de um branco, vou ficar ofendida e vou pensar que não é assim que um negro fala. Com quantos negros é que os tradutores brancos falam antes de traduzirem um livro? Convivem com negros? Traduzem a partir de quê? A que é que recorrem, que pesquisa fizeram?”, interroga-se a autora de \”Erosão\” (2018).
“As pessoas que fazem parte de minorias têm diferenças entre si mas também muitos pontos em comum e olham para outras pessoas marginalizadas, o que é uma vantagem e pode ser aproveitado para as funções de tradução.” — Gisela Casimiro, escritora guineense
Tânia Ganho responde com a própria experiência profissional. Por um lado, diz que como autora — que também é, desde 2005 — quer ser “traduzida pelo tradutor mais competente, que não é branco ou negro, mas a pessoa que se sente diferente de mim e se vai dar ao trabalho de me enviar emails a dizer que não percebeu uma passagem e precisa de mais informação.”
Por outro lado, refere a tradução que fez, em 2018, de \”A Cor Púrpura\”, de Alice Walker:
“Como a linguagem do livro inclui deturpações de linguagem típicas de um estrato social mais desfavorecido nos EUA, que coincide em muitos casos com a comunidade negra, decidi adaptar para português e para isso peguei em textos de um autor angolano, Luandino Vieira, e de uma autora moçambicana, Paulina Chiziane, e fui ver estudos linguísticos sobre as principais deturpações linguísticas nos países africanos de língua portuguesa. Acho que resultou muito bem. Ou seja, a tradutora não pode estar cingida à sua cor de pele e à sua comunidade, tem de ir ao encontro do outro que está no texto, sendo certo que tudo o que faz é sempre um trabalho aproximativo.” — Tânia Ganho, autora e tradutora portuguesa
Justamente a pensar nas pontes culturais geradas pela tradução que Tânia Ganho sugere que a polémica da tradutora holandesa poderia ter sido resolvida sem o afastamento de Marieke Lucas Rijneveld:
“A tradutora e a autora poderiam por exemplo ter publicado, a par com a tradução, um texto conjunto onde dissessem que tinham decidido trabalhar juntas e ir além da cor da pele, porque acreditam na inclusão e na fraternidade, e afirmassem que as editoras têm de olhar para dentro e ver se os funcionários não são quase todos brancos.” — Tânia Ganho, autora e tradutora portuguesa
Em jeito de conclusão, pessoalmente, defendo que a literatura deve ser universal. Com esta ideia, o meu objetivo não é estar contra os negros, muito pelo contrário. É bom ver que, nos últimos tempos, eles têm tido mais visibilidade, que o mercado está a a dar-lhes algum do espaço que eles sempre mereceram porque, para mim, eles não são apenas um número. Tal como seres humanos que são, têm uma existência, um rosto, uma voz e, naturalmente, algo a dizer.
O que me revolta é ver pessoas, que se dizem ativistas, a dizer que os poemas escritos por autoras negras devem ser exclusivamente traduzidos por pessoas com a mesma cor de pele. Mão concordo, acho que isso é super redutor. Um bom tradutor não deixa, em qualquer circunstância que, neste caso, a sua identidade racial e/ ou sexual, visto que a Marieke Lucas Rijneveld se considera não-binária, afete o seu trabalho.
Podem até dizer-me que os autores ou tradutores negros podem conhecer melhor o contexto e ter uma maior identificação com o autor, uma vez que partilham várias semelhanças mas, a meu ver, os tradutores não traduzem apenas palavras. Faz parte das suas tarefas, estudar o autor, o contexto em que a obra foi escrita, a cultura à qual o autor pertence e, paralelamente, a cultura do país para o qual vão traduzir o texto.
Se formos pela lógica de que os tradutores brancos não podem traduzir autores negros, eles nunca poderiam traduzir nomes tão relevantes como Alice Walker, Angela Davis, Chigozie Obioma, Chimamanda Ngozi Adichie, Fran Ross, James Baldwin, Maya Angelou, Roxane Gay e Toni Morrison, entre tantos outros, porque são diferentes, não partilham a mesma cor de pele, a mesma cultura, as mesmas vivências. O mesmo acontece em relação quando a situação é inversa.
Aos meus olhos, são essas diferenças que enriquecem o texto, que mostram o quão multifacetados podemos ser, sem deixarmos de ser humanos.
Para quem ainda não leu, a primeira parte deste post, pode ler aqui:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/amanda-gorman-ate-que-ponto-a-identidade-do-tradutor-deve-ser-igual-a-do-autor-que-vai-traduzir-parte-1/
Para quem quiser conhecer melhor Amanda Gorman, pode ler este post:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/amanda-gorman-a-forca-da-poesia-na-tomada-de-posse-de-joe-biden-atraves-do-poema-the-hill-we-climb-e-a-sua-jornada-de-superacao/
Foto: Amanda Gorman por Astrid Stawiarz
Sobre a autora:
Amanda Gorman tornou-se a sexta e mais jovem poeta, aos vinte e dois anos, a ler um poema na tomada de posse presidencial. Ativista comprometida, trabalha a nível local, nacional e internacional em defesa de causas como o ambiente, a justiça racial e a igualdade de género. O trabalho de Amanda Gorman foi já divulgado em vários meios, tais como The Today Show, PBS Kids, CBS This Morning, The New York Times, Vogue, Essence e O, The Oprah Magazine. É também autora do álbum infantil \”Change Sings\”, com ilustrações de Loren Long, ilustrador bestseller do New York Times, assim como da coletânea de poesia \”The Hill We Climb and Other Poems\”. Amanda Gorman licenciou-se na Universidade de Harvard e vive em Los Angeles.
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Boas leituras!