Amanda Gorman: Até que ponto a identidade do tradutor deve ser igual à do autor que vai traduzir? (Parte 1)

Após o afastamento de Marieke Lucas Rijneveld e de Victor Obiols, que estavam a traduzir a poesia de Gorman, algumas perguntas ficam no ar: Até que ponto a identidade dos tradutores, nomeadamente, a nível racial, é importante e pode ser considerada como um critério de elegibilidade para traduzir a obra de um autor? Será que autores negros como, neste caso, Amanda Gorman, só podem ser traduzidos por tradutores que partilhem a mesma cor de pele?

A poetisa americana Amanda Gorman que, agora, tem 23 anos, ofereceu, a todos aqueles que assistiam à tomada de posse de Joe Biden, um dos momentos mais emocionantes da cerimónia ao declamar “The Hill We Climb”. Esta jovem tornou-se enorme através da sua determinação, do seu talento, do tom profético e de esperança que leu o seu poema.

Leiam a tradução portuguesa, sob o título de \”A Colina que Subimos\”, realizada pela poetisa Raquel Lima:
https://www.casafernandopessoa.pt/pt/cfp/colina-que-subimos-por-amanda-gorman

Contudo, com a sua crescente visibilidade e o interesse de várias editoras em traduzi-la. começam a surgir questões relacionadas com a identidade e a raça do tradutor que vai a vai traduzir. É importante realçar que, até ao momento, Amanda Gorman ainda não se pronunciou sobre toda esta polémica que gira ao seu redor.

\"\"

Tudo começou quando, a conselho da autora de “The Hill We Climb”, a editora Meulenhoff, da Holanda, escolheu Marieke Lucas Rijneveld, vencedora do International Booker Prize no ano passado, com \”The Discomfort of Evening\”, para traduzir o poema da jovem poetisa dos EUA. Todavia, depois da ativista negra Janice Deul ter escrito um artigo num jornal, no qual defende que a tradutora de um poema destes deveria ser jovem, mulher e negra, Marieke acabou por se autoexcluir.

Através da sua conta de Twitter, a autora confessou:

\”Estou chocada com o tumulto à volta do meu envolvimento na divulgação da mensagem de Amanda Gorman e compreendo que as pessoas se sintam magoadas com a escolha da Meulenhoff ao convidar-me. Felizmente, dediquei-me a traduzir o trabalho da Amanda, vendo como o maior desafio manter sua força, tom e estilo. No entanto, percebo que estou em posição de pensar e sentir assim, onde muitos não estão. Desejo que as suas ideias alcancem o maior número de leitores possível e abram os corações.” — Marieke Lucas Rijneveld, autora e tradutora holandesa

Nas palavras do jornalista Francisco Sena Santos, \”Recusar que uma branca, por ser branca, traduza a poesia de uma negra é racismo primitivo”.

\"\"

Recentemente, seguiu-se outro caso semelhante, na Catalunha, com a anulação do convite realizado ao tradutor Victor Obiols, por parte da editora Barcelona Univers, dado que, afinal, ele teria o “perfil errado” para traduzir o poema para o catalão.

Em declarações ao The Guardian, ele declarou:

“Se não posso traduzir uma poetisa que é mulher, jovem e negra, uma americana do século XXI, também não poderia traduzir Homero porque não sou um grego do século VIII a.C. e nem poderia ter traduzido Shakespeare porque não sou um inglês do século XVI.” — Victor Obiols, autor e tradutor catalão

\"\"

Na visão de Pedro Mexia, é válido. “A necessidade de fazer corresponder a identidade de um tradutor à de um autor parece-me uma limitação da ideia de que a arte, neste caso a literatura, é universal”, refere o poeta e crítico português, que também é autor de várias traduções: Wallace Stevens, Hugo Williams ou David Mamet.

“Por princípio, não vejo um problema do ponto de vista literário pelo facto de o tradutor não ter o mesmo género, a mesma etnia ou a mesma orientação sexual do traduzido. Pedir isso é tão bizarro quanto dizermos que só um ator homossexual pode representar uma personagem homossexual, é limitar a circulação das ideias e das imagens.” — Pedro Mexia, cronista, crítico literário, tradutor e poeta português

\"\"

Continuando nessa linha, Margarida Vale de Gato diz-nos que a tradução tem relevância como um caminho em direção ao outro:

“A tradução existe por causa da diferença, procurando aproximações, transportes, contágios. Historicamente, ela tem permitido, justamente por isso, grandes viragens culturais.” — Margarida Vale de Gato, autora, investigadora e tradutora portuguesa

\"\"
Fonte: Viking Books

Mesmo assim, a escritora e investigadora de Estudos Americanos na Faculdade de Letras de Lisboa — tradutora de Edgar Allan Poe, Charles Dickens, W.H. Auden ou Allen Ginsberg — ao mesmo tempo, apoia a visibilidade e oportunidade para os negros na literatura.

Se por um lado, “é importante ficarmos vigilantes para não nos entrincheirarmos em argumentos sobre identidade de raça e de sangue, que quanto a mim tornam redutora não só a democracia como a tradução”, por outro, em simultâneo, “precisamos de atender cada vez mais” ao equilíbrio na igualdade de acesso dos negros.

“Até porque tendemos a estar cegos à circunstância de haver neste momento, felizmente, mais negros a formarem-se e a consolidarem experiências profissionais de alto nível na área das letras”, sublinha Margarida Vale de Gato.

Na sua opinião, o artigo “até agora mais equilibrado” que leu sobre a polémica de Amanda Gorman, e com que concorda “inteiramente”, é o de uma académica australiana, Mridula Nath Chakraborty, publicado a 11 de março na plataforma The Conversation.

Leia o artigo de Mridula Nath Chakraborty:
https://theconversation.com/friday-essay-is-this-the-end-of-translation-156375

\"\"

Tradutor experiente, com uma carreira de quase meio século, Salvato Teles de Menezes explica que, sendo a tradução “uma interpretação do tradutor perante o texto”, a interpretação será tanto mais rica e fiel quanto mais informação o tradutor possuir sobre o texto.

“Para isso é necessário, em princípio, conhecer todo o contexto do autor, mas não vejo que a diferença de características étnicas, ou outras, como a idade, possam ter aqui interferência. Traduzi Saul Bellow, que é um autor judeu com marcas claríssimas dessa pertença cultural, e não senti qualquer impedimento. Aliás, saiu agora uma tradução que fiz de \’Um Tambor Diferente\’, do escritor negro americano Melvin Kelley, e o narrador coloca-se na posição daqueles que têm voz no sul dos EUA, ou seja, os brancos. Ele está a contar uma história de negros nos anos 30, 40, mas fá-lo através das vozes dos brancos. Portanto, um autor com certa característica étnica, e podemos aplicar a mesma lógica ao tradutor, não está impedido de tratar realidades ou inventar personagens que não têm nada que ver com as suas próprias características. Aliás, Melvin Kelley usa até alguns artifícios de um grande escritor branco chamado William Faulkner, que inventou um condado que não existe, Yoknapatawpha County. E Melvin Kelley inventa um condado que também não existe.” — Salvato Teles de Menezes, tradutor português

\"\"

Aos olhos da escritora de origem guineense Gisela Casimiro, “isto estar a acontecer é muito importante e não vai parar tão cedo”, é a “sequência lógica da discussão que o movimento Black Lives Matter trouxe” — um movimento que começou nos EUA contra a violência policial sobre os negros e que ganhou enorme expressão em 2020, incluindo episódios de violência, depois do homicídio às mãos da polícia do cidadão negro George Floyd. Além disso, este caso que envolve Amanda Gorman não se esgota na abordagem literária, suscita uma dimensão política.

Neste sentido, Gisela Casimiro entende a questão está a ser mal colocada:

\”O problema diz respeito ao alicerce, não àquilo que estamos a ver à superfície e que tem sido discutido com desdém. Li comentários de autores brancos, homens, cisgénero [não transgénero], a criticarem esta discussão e a criticarem o poema. Mas estas são as pessoas que têm sempre voz, que acham que é melhor não se levantar estas questões porque assim fica tudo bem. Mas fica tudo bem para quem? Para quem sempre esteve bem. Quando por uma vez se quer dar voz a uma pessoa negra, a uma tradutora para o poema de Amanda Gorman, ficam muito indignados ou fazem troça. Acontece que aquele poema não corresponde apenas a palavras que qualquer um pode traduzir. Ela escreveu o poema, ela disse o poema, ela foi vista a dizer o poema. Isto é fundamental, porque os negros não são só um nome ou um número, têm um corpo, uma mente, uma voz. Amanda ocupou um lugar, teve uma presença. Criar um lugar, dar um lugar, ocupar um lugar. Porque é que não queremos entender o que Amanda Gorman quis dizer no poema e o que este momento tem de histórico e fundamental?” — Gisela Casimiro, escritora guineense

É desta forma que Gisela se refere aos comentários nas redes sociais que procuram desvalorizar ou parodiar a reivindicação de uma tradutora negra para a poetisa americana.

\"\"
Foto: Tânia Ganho/Divulgação

A trabalhar na área da tradução literária há duas décadas, Tânia Ganho também vê a questão mal colocada, mas noutra vertente. O debate “está a tomar uma dimensão meramente cosmética”, diz, porque “estamos a falar do telhado e não das fundações do edifício, estamos a falar de Marieke e a usá-la a ela e ao tradutor catalão como bodes expiatórios em vez de estarmos a falar da sociedade e do sistema”.

“Não vamos lutar pela inclusão, excluindo. O sistema é machista e racista, mas não vamos mudá-lo afastando uma tradutora por ser branca, ou seja, reduzindo-a à cor da pele, o que constitui uma discriminação. Se invertêssemos as coisas, poderíamos ter um autor branco que se recusasse a ser traduzido por um homem negro do Senegal, por achar que ele não entenderia as suas referências culturais. Porque é que a editora holandesa tem agora de procurar tradutores negros, que não tem na sua carteira de tradutores? E porque é que eles não estão na maior parte das editoras europeias? Isso é uma questão profundíssima e não se resolve com um ataque a dois indivíduos, porque as editoras vão continuar a funcionar da mesma maneira. Teríamos de analisar os números: a percentagem da comunidade negra em cada país europeu, o número de negros que acedem ao ensino superior, que áreas profissionais escolhem, se estão interessados na tradução e porque é que não estão na tradução? Fecham-lhes as portas, é uma área que não apela a muitos negros? Não me parece que tenhamos estas respostas.” — Tânia Ganho, autora e tradutora portuguesa

De uma forma consensual, o afastamento quase simultâneo de dois tradutores de um mesmo texto literário é uma situação anómala, provavelmente inédita, e configura uma guerra cultural. Parece dever-se ao debate que tem surgido no espaço público, sobretudo, do lado das civilizações ocidentais acerca das heranças do colonialismo e do lugar dos negros em sociedades cuja cor de pele maioritária é considerada branca.

Já pode ler a segunda parte deste post aqui:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/amanda-gorman-ate-que-ponto-a-identidade-do-tradutor-deve-ser-igual-a-do-autor-que-vai-traduzir-parte-2/

Para quem quiser conhecer melhor Amanda Gorman, pode ler este post:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/amanda-gorman-a-forca-da-poesia-na-tomada-de-posse-de-joe-biden-atraves-do-poema-the-hill-we-climb-e-a-sua-jornada-de-superacao/

Fotos: 1) Amanda Gorman por Astrid Stawiarz; 2) Marieke Lucas Rijneveld por Judith Jockel; 3) Victor Obiols por Violeta Gumà; 4) Pedro Mexia/Divulgação; 5) Margarida Vale de Gato/Divulgação; 6) Salvato Teles de Menezes/Divulgação; 7) Gisela Casimiro por Filipe Ferreira; 8) Tânia Ganho/Divulgação

Sobre a autora:
Amanda Gorman tornou-se a sexta e mais jovem poeta, aos vinte e dois anos, a ler um poema na tomada de posse presidencial. Ativista comprometida, trabalha a nível local, nacional e internacional em defesa de causas como o ambiente, a justiça racial e a igualdade de género. O trabalho de Amanda Gorman foi já divulgado em vários meios, tais como The Today Show, PBS Kids, CBS This Morning, The New York Times, Vogue, Essence e O, The Oprah Magazine. É também autora do álbum infantil \”Change Sings\”, com ilustrações de Loren Long, ilustrador bestseller do New York Times, assim como da coletânea de poesia \”The Hill We Climb and Other Poems\”. Amanda Gorman licenciou-se na Universidade de Harvard e vive em Los Angeles.

Também estamos no Instagram:
https://www.instagram.com/sonhandoentrelinhas/

Boas leituras!

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top