Nesta novela de Steinbeck, a segunda obra da sua carreira, que foi publicada pela primeira vez no ano de 1937, por volta dos seus 35 anos, tendo sido, por várias vezes, adaptada para o cinema e para o teatro, encontramos uma narrativa sobre amizade, sobre dignidade e sacrifício e, ao mesmo tempo, uma parábola implacável sobre o ruir do sonho americano. Relativamente a esta edição portuguesa de \”Ratos e Homens\” (\”Of Mice and Men\”, no título original), com 104 páginas e uma tradução realizada pelo escritor brasileiro Érico Veríssimo, ela chegou aos leitores portugueses pela Editora Livros do Brasil.
John Steinbeck sempre foi um autor preocupado com as condições de vida dos trabalhadores rurais e, ao longo da sua carreira, isso foi se tornando numa marca registada no que diz às temáticas mais abordadas nas suas obras. Muito provavelmente, o facto de ele, antes de ser um escritor consagrado, ter executado trabalhos braçais e, além disso, ter nascido em Salinas, uma região agrícola situada na Califórnia, ajudou-o a conhecer bem essa realidade e a transcrevê-la para o papel, de uma forma brilhante, retratando, como poucos, a dura vida dessas pessoas, principalmente, nos anos que se seguiram à crise económica que assolou os EUA após a Grande Depressão de 1929.
Como personagens principais desta novela, Steinbeck apresenta-nos dois homens que, a meu ver, são a antítese perfeita um do outro. Se, de um lado, temos George, um homem de estatura baixa, extrovertido muito inteligente, cuidadoso, sempre focado em perceber as outras pessoas e resolver as situações mais complexas, do outro, temos Lennie, um homem alto, corpulento, que se esquece daquilo que lhe dizem, possui atitudes de criança e, no fundo, parece que só serve para cumprir ordens. Adicionalmente, ele tem um comportamento estranho que é o de acariciar coisas que, para ele, são agradáveis, tais como alguns tipos de tecidos e até ratos, cães, coelhos. Ainda assim, por não calcular o tamanho da sua força, ele acaba por matar esses aniomais, mesmo que não seja umea pessoa de mau coração. Todavia, George e Lennie andam sempre juntos e são amigos de longa data.
No início da história, acompanhamos esta dupla na sua viagem até um rancho e, busca de emprego. Contudo, devido à distância, eles acabam por parar numa área bastante verdejante.
\”Os homens como nós, que trabalham nas herdades, são os camaradas mais solitários do mundo. Não têm família, não pertencem a nenhum lugar. Chegam a uma herdade e trabalham até juntarem algum dinheiro e depois vão à cidade e deitam fora o dinheiro, e então não têm outro remédio senão entrar a sacudir o rabo noutra herdade. Não podem esperar nada do futuro. (…) Connosco não acomtece o mesmo. Temos um futuro. Temos alguém com quem falar, alguém que pensa em nós.\” — John Steinbeck
Nessa altura, George vai narrando uma pequena história para o Lennie sobre os planos que ambos poderiam fazer depois de deixarem esses trabalhos rurais esporádicos.
\”Bom… Um dia… juntamos dinheiro pra comprar uma casinha e uns dois acres de terra, uma vaca, uns porcos e… (…) Vamos ter uma boa horta, uma coelheira e galinhas. Quando chegarem as chuvas, no inverno, mandaremos o trabalho para o diabo, e faremos um bom fogo na lareira e sentar-nos-emos pata a ouvir a chuva cair no telhado.\” — John Steinbeck
Quando chegam ao rancho, a natureza observadora de George analisa, quase de imediato, os potenciais problemas que os dois podem vir a enfrentar e o seu foco recai sobre Curley, o filho do patrão, que, de acordo com outras personagens, gosta de arranjar sarinhos com toda a gente e quando se depara com tipos como Lennie, essa sua vontade ainda é mais visível. Só que, paralelamente, ele tabém vislumbra, naquele mesmo lugar, finalmente, uma hipótese de realizar o sonho de ambos, pelo que, em nome de querem ter uma casa e um pedaço de terra que possam chamar de seus, ele vê-se obrigado a permanecer ali.
Com o desenrolar da história, nós, como leitores, vamos percebendo o motivo pelo qual George ficou a tomar conta de Lennie e como é que eles vão lidar com as mais diversas situações, como vão interagir com os outros personagens, ricos em detalhes, extremamente bem construídos pelo autor que, em poucas páginas, nos demonstra as diversas ambições e, obviamente, os problemas que cada um deles carrega dentro de si, ainda que, no fundo, todos eles partilhem os mesmos sonhos.
Na minha opinião, a próxima citação é uma das mais comoventes do livro quando Crooks, que é negro e moço do estábulo, desabafa sobre o seu estado de permanente solidão e como, em múltiplas ocasiões, gostaria de ter alguém com quem conversar e, apesar de ler bastantes livros, isso não é suficiente para ele.
\”(…) Eu estava a falar de mim. Uma pessoa fica aqui sentada de noite, a ler livros, ou a pensar, ou qualquer coisa assim… Às vezes, ficamos a pensar e não temos ninguém que diga sim ou não. Quando vemos alguma coisa, não sabemos se está certo ou errado. Não podemos perguntar a alguém se viu também. Não podemos falar. Não temos com quem discutir. Tenho visto muitas coisas aqui. E eu não estava bêbedo. Não sei se estava a dormir… Se tivesse um companheiro comigo, ele podia dizer se eu estava a dormir, e tudo ficava bem. Mas não sei…\” — John Steinbeck
Com uma escrita simples mas repleta de referências interessantes e com uma carga bastante reflexiva, John Steinbeck entrega-nos \”Ratos e Homens\” e mergulha-nos num universo que se expande muito para além das dificuldades da vida rural, na medida que recupera temas como a solidão, a amizade, o racismo, de forma breve, e, pelo menos, para alguns, o eterno e inalcansável sonho americano.
Foto: John Steinbeck por Peter Stackpole
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Sobre o autor:
Nasceu em Salinas, na Califórnia, em 1902, numa família de parcos haveres. Chegou a frequentar a Universidade de Stanford, sem concluir nenhuma licenciatura. Em 1925, John Steinbeck foi para Nova Iorque, onde tentou uma carreira de escritor, cedo regressando à Califórnia sem ter obtido qualquer sucesso. Alcançou o seu primeiro êxito, em 1935, com \”O Milagre de São Francisco\” (\”Tortilla Flat\”, na edição original), confirmado depois, em 1937, com a novela \”Ratos e Homens\”. A sua ficção está marcada por uma imensa preocupação com os problemas dos trabalhadores rurais e, também, por um grande fascínio para com a terra. Em 1939, publicaria aquela que, por muitos, é considerada a sua obra-prima, \”As Vinhas da Ira\”. Entre os seus livros, destacam-se ainda os romances \”A Leste do Paraíso\” (1952) e \”O Inverno do Nosso Descontentamento\” (1961), bem como \”Viagens com o Charley\” (1962), em que relata uma viagem de três meses por quarenta estados norte-americanos. Recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1962. Faleceu em Nova Iorque, a 20 de dezembro de 1968.
Sugestão de Leitura:
Leitores residentes em Portugal:
\”Ratos e Homens\”, de John Steinbeck (Editora Livros do Brasil, Wook):
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