Inspirado pela famosa frase inicial do clássico russo \”Anna Karénina\”, de Liev Tólstoi, “todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”, Afonso Cruz constrói uma narrativa repleta de cruzamentos de geografias, identidades, encontros e desencontros, onde incluiu uma “viagem ao Vietname e ao Camboja“ com o objectivo de “encontrar vestígios de nós próprios pelo mundo”.
“Eu seria muito infeliz num mundo feliz. Ela seria feliz em qualquer mundo. Esta história, a minha e da tua mãe, é também a tua.”
— Afonso Cruz
Editado em Portugal pela Companhia das Letras Portugal no ano de 2018, “O Princípio de Karenina”, que chegou ao Brasil este ano pelo grupo editorial fundado por Luiz Schwarcz, relata-nos a carta escrita por um homem à filha que não conheceu, narrando a sua vida desde a infância para ela.
Se a analisarmos a um nível mais profundo, trata-se de uma carta intimista, apresentada em cinco momentos, marcados sempre por uma fotografia e citações que nos recordam o clássico “Anna Karenina”. Através destas pequenas paragens. somos obrigados a olhar para dentro de nós mesmos, na medida que devemos repensar o espaço, o tempo e a felicidade, onde os segredos mais recônditos da alma são descritos de forma intensa, simples e reveladora.
Esta história tem o seio familiar como ponto de partida, onde o protagonista evidencia a forma como o seu pai revelava o pânico visceral face ao mundo desconhecido:
“O meu pai chamava bárbaros a todos os que viviam fora da nossa casa, os gregos chamavam bárbaros aos que não eram gregos”. Uma aversão ao estrangeiro, ao desconhecido, um medo de que alguma coisa pudesse ameaçar a segurança ou a vida de alguém – a sua própria vida. Um pai que “era um afasta-tudo, enquanto o amor é o contrário disso.”
— Afonso Cruz
A vida, tal como o crescimento, é composta de encontros e desencontros, de tensões e contradições. Dessa forma, onde reinava o medo e os preconceitos habitava também o amor. A mãe surge como símbolo do feminino, do afecto e da conciliação, dado que é ela que lhe acaricia o pé deformado, como quem lambe feridas e motiva uma perfeição que não existe.
Um dia, num momento desprevenido, o seu pai morre.
“Quando voltámos a casa, depois do enterro, subi à figueira da entrada da propriedade. Creio que,
nessa altura, pensava ainda na morte como um espaço físico que é possível vislumbrar como qualquer
paisagem banal. O que vi nesse dia, do cimo da figueira da entrada da propriedade, foi uma visão feliz.
Concluí nesse momento que as melhores paisagens são feitas de pessoas. E o melhor do que as
pessoas são os amigos.”
— Afonso Cruz
Com a morte do pai, a casa é inundada com um cheiro que, mais tarde, trará a mudança.
Se, por um lado, a Fernanda da Farmácia foi a descoberta do “coração aos pulos”, dos “arrepios pelo corpo, os lábios cada vez mais perto, uma eternidade mais perto, os pêlos dos braços eriçados“, por outro lado, colocou o protagonista diante do desalento, ainda que ele se tenha habituado à sua presença serena, ao facto dela ser amiga da mãe e, ao mesmo tempo, uma sombra presente para recordar os votos feitos no dia do casamento.
A grande reviravolta na sua vida dá-se com a chegada da nova empregada. A verdadeira paixão é sentida como nunca, “já que não era capaz de pensar noutra coisa. Era o amor em botão.”. A partir desse momento, acabou por conhecer o verdadeiro amor, a verdadeira felicidade que guardou em segredo, tal como o “figo é a tal flor que floresce para dentro, em segredo, que não sabe expor-se ou não quer expor-se.”. Nasce assim uma história de amor, com esporádicos momentos de felicidade.
Nas suas páginas, “Princípio de Karenina” carrega um “encontro de ingredientes de várias proveniências”, que são simultaneamente “remédio e alimento”, tal como os poderes milagrosos da curcuma, que cura “todas as maleitas” e “tingiu a minha vida toda. Não saíra com os anos.”.
Em suma, esta é a narrativa de um menino que cresce e se torna homem. Uma história da procura de si mesmo, da felicidade. Uma história intimista, de arrependimento, desilusão e obsessão, onde os momentos fugazes são valiosos para a felicidade. Afinal, o que é isso de ser feliz? Tal como é dito na frase inicial do clássico da literatura russa já mencionado, foi assim com o protagonista. É assim com todos nós.
Foto: Afonso Cruz por Hugo Amaral
Sobre o autor:
Nascido na Figueira da Foz em 1971, Afonso Cruz é escritor, ilustrador, cineasta e músico da banda The Soaked Lamb. Em Julho de 1971, na Figueira da Foz, era completamente recém-nascido, e haveria, anos mais tarde, de frequentar lugares como a António Arroio, as Belas-Artes de Lisboa, o Instituto Superior de Artes Plásticas da Madeira e mais de meia centena de países. Assina, desde Fevereiro de 2013, uma crónica mensal no Jornal de Letras, Artes e Ideias sob o título «Paralaxe». Recebeu vários prémios e distinções nas diversas áreas em que trabalha, vive no campo e gosta de cerveja. Os seus livros estão publicados em vários países.
Sugestões de Leitura:
Leitores residentes em Portugal:
“Princípio de Karenina”, de Afonso Cruz (Companhia das Letras Portugal, Wook):
https://www.wook.pt/livro/principio-de-karenina-afonso-cruz/22382279
Leitores residentes no Brasil:
“Princípio de Karenina”, de Afonso Cruz (Companhia das Letras, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Princ%C3%ADpio-Karenina-Afonso-Cruz/dp/8535933301
Boas leituras!