“Os anos”, de Annie Ernaux

Graças ao vídeo de opinião da Tamlyn Ghannam, do canal LiteraTamy, e à Vera Valadas Ferreira, da Editora Livros do Brasil, que me cedeu um exemplar deste livro, tive o prazer, até ao momento, a minha melhor leitura do ano de 2020. “Os Anos”, de Annie Ernaux, mergulha-nos num portentoso exercício de memória que percorre o período de 1941 a 2006, e mescla uma escrita detalhada, com momentos intimistas, entrelaçados com fotografias da sociedade francesa, ao longo destas seis décadas, que nos fazem refletir diversos temas como a natureza e a existência humana, a juventude, a sexualidade, a emancipação, a maternidade, o papel das mulheres na sociedade, os efeitos das guerras, a política e a liberdade, num registo de autobiografia impessoal. Definitivamente, uma leitura que recomendo a toda a gente.

Antes de vos trazer um pouco daquilo que penso sobre o que li, e aprendi, com esta magistral autora, devo dizer que o facto que a levou a construir esta obra é bastante audacioso e, na minha opinião, diria que naveguei em mares “nunca antes navegados”.

Apesar de ter 200 páginas, o que, para a maior parte das pessoas, é considerado um livro curto, a narrativa de “Os Anos”, atravessa um longo período de tempo. Para ser mais exato, ela abraça grande parte do século XX, entre os anos de 1941, onde ainda decorre a Segunda Guerra Mundial, e 2006, onde a sociedade já é mais contemporânea.

\"\"
Fonte: Editora Livros do Brasil

Esse imaginário visitado, vezes sem conta, apresenta-nos, através das fotografias do seu próprio acervo pessoal, datadas, uma mesma mulher, numa viagem entre os dois extremos da nossa existência, a infância e a velhice. Desta forma, como ela enfatiza, desde a primeira linha, “Todas as imagens irão desaparecer”, o que, para mim, marca, com tinta indelével, a urgência que ela sente em retratar os “seus anos”, para os preservar e, ao mesmo tempo, os afastar, sem qualquer dúvida, do desaparecimento. Como ela própria afirma, na página 16, “nas conversas à volta de uma mesa em dia de festa seremos apenas um nome, cada vez mais sem rosto, até desaparecermos na multidão anónima de uma geração distante.

Annie Ernaux mescla, com maestria, fragmentos que se aproximam de um registo de diário, no qual está implícito, naturalmente, uma abordagem mais intimista, na página 12, “Como o desejo sexual, a memória nunca acaba. Ela acasala dos mortos com os vivos, os seres reais com os imaginários, o sonho com a história.”, com observações mais coletivas, “As pessoas deslocavam-se a pé ou de bicicleta, numa cadência regular, os homens com os joelhos afastados, as pernas das calças presas com molas em baixo, as mulheres com as nádegas apertadas na saia justa, desenhando movimentos fluídos na tranquilidade das ruas. O cenário era de silêncio e a bicicleta marcava a velocidade da vida.”, na página 32.

Se existiu algo que, captou a minha atenção, durante a minha leitura, esse algo foi, entre muitas outras coisas, a sua visão, enquanto mulher, de tudo aquilo que se passava na sociedade francesa, dado que a França tinha, e ainda tem nos dias que correm, uma grande influência, na cultura e no pensamento europeu, “o progresso era o horizonte de todas as existências. Significava o bem-estar, a saúde das crianças, as casas luminosas e as ruas claras, o conhecimento, tudo o que virava as costas às coisas obscuras do campo e à guerra.”, na página 35.

Ainda que tenha optado por usar um registo impessoal a esta autobiografia, utilizando a 3ª pessoa, é impossível não reparar em alguns traços com que ela caracterizou a sua adolescência, nomeadamente, “o sentimento do absurdo e a náusea invadiam-nos. O corpo voluptuoso da adolescência reencontrava no existencialismo o ser «em excesso»”, na página 49, uma ideia que é reforçada, em menos de um piscar de olhos, com “o campo dos desejos e das interdições tornava-se imenso. Vislumbrava-se a possibilidade de um mundo sem pecado. Os adultos viam-nos como seres desmoralizados por causa dos novos escritores e por já não querermos respeitar nada.”, na página 50.

Regressa a essa ideia, quando realça o comportamento da sociedade, naquela época, com a vigilância excessiva das raparigas e a vergonha que isso lhes provocava, “a vergonha não cessava de ameaçar as raparigas. o modo como se vestiam. como se maquilhavam era sempre vigiado pelo excesso: muito curto, muito comprido, muito decotado, muito apertado, muito provocante, etc., a altura das saltos, as companhias, as saídas e as horas de entrada em casa, as cuecas entre as pernas todos os meses, tudo nelas era objeto de vigilância pela sociedade em geral.”, na página 58.

Além disso, mais à frente, defende a importância da educação, a fim de combater a tentação já enraizada, entre as mulheres, de se afastarem dos seus objetivos para se perderem por um homem, “muito mais que um meio de escapar à pobreza, os estudos eram para ela um instrumento privilegiado de luta contra o atolamento desse lado feminino que lhe inspira compaixão, contra essa tentação conhecida de se perder por um homem.“, na página 70.

Com o passar dos anos, na página 71, ela narra que “a chegada de cada vez mais rápida de coisas novas fazia com que o passado fosse recuando para mais longe. As pessoas não se interrogavam acerca da utilidade das coisas, desejavam simplesmente possuí-las e sofriam por não ganhar o suficiente para as poderem pagar de uma só vez.”. A passos largos, na página 93, ela adverte que “a sociedade tinha, agora, um nome, chamava-se «sociedade de consumo». Era um facto que não levantava discussão, uma certeza acerca da qual, quer aplaudíssemos, quer lastimássemos, não havia retorno.”

Para muitos, à margem deste progresso, se por um lado, “o discurso do prazer suplantava tudo. Era preciso ter prazer a ler, a escrever, a tomar banho, a defecar. A finalidade de qualquer atividade humana era o prazer.”, por outro, a partir de um certo momento, ela depara-se com uma de muitas desigualdades. Isso ocorre quando ela desabafa, na página 89, “pensávamos na nossa história, no que era ser mulher. Percebíamos que não tínhamos tido a nossa parte de liberdade sexual, criativa, em relação a tudo o que é concedido ao homem.”

Todavia, ela admite, na página 89, que mesmo que, na província, a voz das mulheres começasse “a fazer-se ouvir”, através do “Movimento de Libertação da Mulher, o MLF”, mesmo com o surgimento da sua “revista Le torchon brûle que podia ser comprada nos quiosques.“, a existência de cartazes onde se podia ler “Uma mulher sem homens é como um peixe sem bicicleta”, fazia com que elas analisassem as suas vidas, retrospetivamente, e se sentissem “capazes de deixar marido e filhos, de nos desligarmos de tudo e de escrever com crueldade.”

Entretanto, na página, página 90, depois do suicídio de Gabrielle Russier, que as tinha “emocionado como se fosse o de uma irmã desconhecida”, decidiram participar numa manifestação que teve lugar “num sábado à tarde, entre milhares de pessoas, manifestando-se ao sol, atrás de bandeiras e cartazes, levantando os olhos para o céu uniformemente azul na província de Dauphiné, sabíamos que dependia de nós, pela primeira vez, acabar com todos os séculos de morte sangrenta das mulheres. Quem poderia esquecer-nos?”

Em jeito de conclusão, posso dizer que, apesar de ter sido editado, originalmente, em 2008, mesmo retratando muitos temas que dominaram o século passado, esta é uma leitura que continua atual, visto que, de forma brilhante, retrata a natureza do ser humano, nas suas mais variadas dimensões.

Foto: Annie Ernaux por Ulf Andersen

Caso queira adquirir estes, ou quaisquer outros livros, apoie o Sonhando Entre Linhas, usando o link de afiliado da Wook:
https://www.wook.pt/?a_aid=595f789373c37

Sobre a autora:
Nascida em Lillebonne, na Normandia, em 1940, Annie Ernaux estudou nas universidades de Rouen e de Bordéus, sendo formada em Letras Modernas. Atualmente, é uma das vozes mais importantes da literatura francesa, destacando-se por uma escrita onde se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes. Galardoada com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017) e o Prémio Formentor de las Letras (2019) pelo conjunto da sua obra, destacam-se os seus livros \”Um Lugar ao Sol\” (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e \”Os Anos\” (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Os Anos”, de Annie Ernaux (Livros do Brasil, Wook):
https://www.wook.pt/livro/os-anos-annie-ernaux/23706033

Leitores residentes no Brasil:
“Os Anos”, de Annie Ernaux (Três Estrelas, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/…/6c8bd84b-8d3e-4db5-a9f7-c12c9…

Também estamos no Instagram:
https://www.instagram.com/sonhandoentrelinhas/

Boas leituras!

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top