“Estela sem Deus”, de Jeferson Tenório

Tendo começado a conhecer a escrita do autor Jeferson Tenório em 2020, através da leitura do seu terceiro romance, “O avesso da pele”, vencedor da edição de 2021 do Prêmio Jabuti e ainda finalista do Prêmio São Paulo de Literatura nesse mesmo ano, que eu classifiquei como a minha melhor leitura daquele ano, fiquei feliz quando soube que “Estela sem Deus”, o segundo romance do autor, tinha sido publicado no Brasil numa nova edição pela Companhia das Letras, o que naturalmente fez com que eu ficasse interessado em ler esta narrativa.

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“Estela sem Deus”, de Jeferson Tenório
(ed, Companhia das Letras, 184 páginas)

Os pensamentos de Estela sobre Deus, tão presentes desde o início da sua trajetória, ganham a intensidade da fé e a desilusão de ver sua liberdade privada. Pode-se dizer que a liberdade é uma ambição da filosofia, e Estela vive em busca de ser livre. Livre para questionar, sentir prazer, procurar sua autenticidade e seu lugar.
— Djamila Ribeiro

Se, antes, a narrativa de “O avesso da pele” nos trouxe um jovem, chamado Pedro, como protagonista, agora, em “Estela sem Deus”, como o título já entrega, é Estela, uma jovem também negra, que está no centro do enredo.

Devido á riqueza e diversidade estilística que Tenório possui, facilmente notamos que, apesar de as duas obras abordarem a temática da desigualdade social, que é provocada não só pelas difíceis relações familiares, como também pelos problemas relacionados com a formação da identidade dos personagens e, sobretudo, pelo racismo que continua enraizado e bem presente na sociedade, a condução daquilo que Jeferson nos quer contar é realizada de formas bem distintas. Enquanto, em “O avesso da pele”, a narrativa, mesmo colocando o leitor perante uma multiplicidade de vozes, é narrada num aparente modo de segunda pessoa, em “Estela sem Deus”, a história é narrada na primeira pessoa.

À medida que vamos lendo este livro, percebemos que a protagonista, que no início é uma adolescente, tem o sonho se se tornar uma filósofa.

Nesse sentido, com base nas relações que ela tem com a sua mãe, Irene, e com Augusto, o seu irmão mais novo, somos guiados por um texto repleto de reflexões que Estela vai fazendo ao longo do seu amadurecimento e, obviamente, com o passar do tempo, essas mesmas reflexões e perguntas vão se tornando cada vez mais complexas.

Habituada á ausência de uma figura paterna, Estela, desde cedo, testemunha as muitas dificuldade que Irene, que trabalha como empregada doméstica, sente criá-los sozinha, o que se agrava mais, porque ela tem uma doença que a impede de trabalhar.

As coisas mudam quando, depois de um episódio de violência ocorrido na periferia de Porto Alegre, que envolve este trio de personagens.

Se me permitem um parênteses, devo dizer que ao ler este episódio, recordei imediatamente uma frase marcante que está na obra que sucedeu a este romance:

No sul do país, um corpo negro será sempre um corpo em risco.
— Jeferson Tenório em “O avesso da pele”

Voltando ao livro que motiva esta opinião, por sentir que o ambiente se torna insuportável, Irene toma a decisão de enviar os filhos para o Rio de Janeiro, para que Jurema, amiga e madrinha, cuide deles, sendo que ela é cabeleireira em Copacabana.

A partir daqui, Estela e Augusto passam a experienciar um mundo totalmente novo para eles a todos os níveis. Uma das primeiras diferenças prende-se com o facto de que, de acordo com as crenças religiosas de Jurema, a solução para todos os problemas dos meninos está na necessidade de serem salvos do pecado e começa a levá-los para o culto na igreja evangélica:

Naquele dia, enquanto nos preparávamos para sair, a madrinha disse que quem não tem Deus ao seu lado é castigado mais cedo ou mais tarde.
— Jeferson Tenório

Nessa caminhada, Estela, que juntamente com Augusto, na infância em Porto Alegre, tinha frequentado os terreiros onde se praticava o Umbanda, é convencida pela madrinha a participar dos cultos:

A partir daquela noite, fiz a promessa de que eu salvaria a todos da minha família. E a única forma de alcançar a salvação era me colocar ao lado de Jesus o mais rápido possível. Para tanto, passei a acompanhar minha madrinha em todas as idas à igreja. Hove semanas em que eu ia quase todos os dias. A frequência nos cultos me dava a sensação de que eu me redimia e que, enfim, Deus nos perdoava.”
— Jeferson Tenório

Neste livro, a temática de religião está bastante presente. Depois desta mudança para o Rio de Janeiro, a protagonista, que sempre questionou tudo, não fosse a sua atividade favorita pensar sobre a vida, começa a questionar o Cristianismo e a forma como algumas pessoas a pressionam a fazer parte daquela comunidade tentando restringir a sua liberdade religiosa, sendo que ela, por não ter crescido nesse ambiente, tem uma visão totalmente diferente.

Em grande parte do livro, há um debate fortíssimo dentro de Estela que a leva a tentar descobrir, para além do seu lugar no mundo, quem é Deus.

Durante algum tempo, os cultos acabam por se transformar na solução na vida de carências e falta de oportunidades de Estela. Ainda assim, a menina mantém o sonho de se tornar filósofa não abre mão da sua teimosa e inconveniente mania de refletir e rapidamente encontra outras alternativas, principalmente quando volta a estudar.

Em suma “Estela sem Deus” é mais um romance impactante que nos faz refletir não só na questão do racismo ter uma marca estrutural em todo o Brasil, que aumentam ainda mais a dificuldade de Estela, pelo facto de ser negra. conseguir vencer na vida, como também traz as temáticas do fanatismo religioso, da violência, de quem detém o poder sobre o corpo feminino, para além das difíceis relações familiares. Escusado será dizer que recomendo a leitura deste romance a todos.

Foto: Jeferson Tenório/Divulgação

Sobre o autor:
Nascido no Rio de Janeiro, em 1977, e radicado em Porto Alegre, Jeferson Tenório é doutorando em teoria literária pela PUCRS. Estreou-se na literatura com o romance “O Beijo na Parede” (2013), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. Com “O avesso da pele”, romance vencedor do Prêmio Jabuti 2021 na categoria de \”Romance Literário\”, o autor fez a sua estreia na Companhia das Letras. É autor também de “Estela sem Deus”, romance originalmente editado em 2018 e reeditado pela Companhia das Letras em 2022.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes no Brasil:
“Estela sem Deus”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Estela-sem-Deus-Jeferson-Ten%C3%B3rio/dp/6559211584

Boas leituras!

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