#7 – Um pouco de Domesticação

Uma coisa interessante sobre tradução é que, quando a estudamos, acabamos por ter uma visão muito mais ampla do que quando a consumimos, somente. Quando só consumimos, na realidade, nem notamos que estamos a ler uma tradução de algo e acabamos por considerar aquela tradução como a obra original, visto que aquela é a única versão que, muitas vezes, vamos conhecer, a não ser que tenhamos domínio sobre outra língua e não precisemos da tradução. No entanto, sabia que essa visão pode ter raízes muito profundas naquilo que conhecemos como “domesticação”?

É normal que os leitores sem grandes conhecimentos de tradução não saibam, mas existe uma longa e antiga discussão sobre tradução domesticada e, ao longo da história, os estudiosos dividiram-se em dois grupos: os que concordam e os que não concordam com a prática. A domesticação no mundo da tradução consiste em apropriar.se de um texto original e adaptá-lo, no momento da tradução, para que ele se encaixe no contexto sociocultural da língua para qual está a ser traduzido, de modo a parecer uma obra original e não uma tradução.

A domesticação pode ser aplicada a uma obra inteira ou, também, de forma sutil, substituindo alguns traços culturais do texto para que não causem “estranhamento” ou fiquem mais “compreensíveis” por assim dizer. Ela nasce tanto do problema do etnocentrismo quanto da ideia de que uma tradução só é considerada boa quando não parece ser uma tradução, mas algo original, um grande exemplo são as “Belas Infiéis”, mencionadas no texto anterior. A verdade é que a própria tradução é considerada ainda de menor valor dentro do panorama literário, o que é irônico, uma vez que é ela quem tem o poder de aumentar o seu alcance.

Alguns tradutores usam a domesticação como maneira de resolver desafios da tradução, que são inúmeros, e mesmo que nem sempre tenhamos como fugir disso, o que realmente há de errado em deixarmos o estrangeiro aparecer? Quando consumimos uma obra, que foi originada fora do nosso contexto cultural, não devíamos esperar que ela trouxesse consigo aspectos que mostram que ela vem de outra cultura? Qual é o sentido de querermos ter acesso às obras estrangeiras se só as aceitarmos quando as domesticamos? Existem diversas formas de resolver problemas de tradução, como notas de rodapé explicativas, então por que escolher a domesticação?

A verdade é que como leitores e tradutores acabamos por ter dificuldade em aceitar o diferente, quando, de facto, aprendemos muito mais com ele do que com aquilo que nos é comum. Uma tradução não deveria ser usada para o apagamento da essência de uma obra, e sim para prolongar a sua vida. Por conta da tradução, temos acesso a diversos conteúdos que nem sequer conheceríamos, então, não é justo estarmos sempre tão insatisfeitos com o seu resultado. Uma tradução pode, claramente, parecer uma tradução e, mesmo assim, ser excelente, manter a essência e os aspectos originais e, ao mesmo tempo, ser entendível e rica, dado que não há nada de errado no facto do estrangeiro ser e parecer ser estrangeiro.

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Boas leituras!

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