Neste novo texto, Alice Maulaz traz-nos a sua visão sobre a dupla identidade que a protagonista de \”Mrs. Dalloway\” veste em certos momentos da narrativa e, em outros despe. Por outras palavras, ela faz-nos refletir sobre a luta que as mulheres travavam, quer como solteiras, em que representavam um determinado papel perante a sociedade, quer como casadas, em que esse papel estava sempre dependente do marido.
Clarissa Dalloway é uma personagem complexa e que se mostra vulnerável às cobranças que ocorrem diante do seu papel como mulher, esposa e mãe na classe alta inglesa, que alteram constantemente a forma como ela se vê como indivíduo. Segundo Oliveira (2014), desde a mudança do próprio sobrenome de solteira para o de casada, o que era comum na época, Clarissa se sente violada e impedida de viver as sensações prazerosas da juventude.
Pode-se dizer que Sally é uma personagem marcante, presente nestas lembranças que simbolizam a jovialidade e liberdade que antes sentia Clarissa. Neste contexto, fica claro que Sally provoca diversas sensações em Clarissa, desde as suas ideias contrárias às tradições modernas e hábitos que, até então, pareciam ousados de mais para uma mulher naquela época. O mais curioso, contudo, é constatar que a própria Clarissa percebeu que Sally a fazia se sentir completa, de um jeito que ela não sentia por nenhum homem e considerou o beijo de Sally como \”o momento mais maravilhoso de toda a sua vida\” (Woolf, 2013, l. 515).
Mesmo assim, Clarissa cumpre o papel esperado pela sociedade e, durante a narrativa, flutua entre a identidade que precisa representar como Mrs. Dalloway e a sua identidade de Clarissa da juventude, conforme comentado acima, sendo que o casamento é um grande divisor de águas entre as duas formas de agir e de ser. Como ainda afirma Oliveira (2014), as próprias festas dadas por Clarissa são o sinal de que há, enfim, algum tipo de vida naquela identidade de mulher casada.
Além disso, ainda é possível ver como as marcas de identidade de Clarissa, enquanto Mrs. Dalloway. se estendem a uma posição solitária num casamento descrito como parte de um abismo pela própria personagem:
\”E há uma dignidade nas pessoas; uma solidão; mesmo entre marido e mulher um abismo; e que se deve respeitar, pensou Clarissa, olhando-o abrir a porta; pois não se pode rompê-la, ou tomá-la, contra a vontade dele, ao marido, sem perder a própria independência, o respeito por si – algo, afinal, inestimável.\” —Woolf, 2013, l. 1821
Conforme descrito acima, a personagem reconhece o abismo presente no seu casamento e tenta convencer-se a ela mesma de que aquele abismo necessário fazia parte de um casamento saudável, tentando, dessa forma, ter uma ideia de independência.
Pode-se dizer que Clarissa abraça a identidade de dama da sociedade depois de escolher entre a estabilidade representada por Richard Dalloway, o seu atual marido, e as aventuras e instabilidade representada por Peter Walsh. O mais preocupante, todavia, é constatar que além de representar instabilidade, Peter também a privava de ter a sua liberdade, como ela descreve na própria narrativa:
\”[…], mas com Peter tudo tinha de ser dividido; tudo partilhado.\” – Woolf, 2013, l. 112 e 113
Ora, em tese, Clarissa já procurava o seu espaço ao considerar a distância algo necessário num relacionamento, o que ela não sentia na relação com o Peter. Caso contrário, ela não teria ficado aliviada em não se casar com ele, conforme explicado acima. É também importante considerar que a figura de mãe representada por uma nova Clarissa, após o casamento, Mrs. Dalloway, é igualmente algo que intriga a personagem, seja porque a sua filha estava numa fase conturbada da adolescência e de difícil aproximação, como Clarissa mesma descreve sobre a sua filha \”Quando criança, tinha tido um senso de humor perfeito; mas agora aos dezessete, por quê, Clarissa não conseguia nem de longe entender, tinha se tornado muito séria\” (Woolf, 2013, l. 1868).
Logo, estes questionamentos internos sobre as decisões do passado sobre o casamento, os conflitos da maternidade e a busca por uma identidade de si mesma são conflitos pertinentes que entram no ápice da ruptura ao final da narrativa, depois do suicídio de Septimus, que depois da personagem refletir à janela, encontra a conclusão de como lidar com estas questões como bem contrasta Harris (2012):
\”[…] Clarissa Dalloway, que tenta ininterruptamente remontar sua vida durante a tarefa prosaica de organizar uma festa, quase sucumbe aos poderes da morte ao perceber que tivera apenas tomado parte na ordem das coisas (esposa/mãe), mas volta à festa após intuir que sua existência, estar lá, poderia dar um outro significado ao mundo.\” – Harris, 2012, p. 15
Portanto, a autora deixa claro, na citação acima, a grande conclusão da narrativa, ou seja, que Clarissa escolhe resistir e criar uma identidade nova diante de sua própria perspectiva de mundo. Esse é o motivo pelo qual é importante frisar essa questão. Ainda que Woolf tenha dito que, na versão original, Clarissa morreria, como comentado anteriormente, a mensagem final escrita celebra a significância da existência da personagem e do seu mundo diante de tantas dificuldades. Logo, conclui-se que Clarissa celebra a vida.
Em resumo, Clarissa Dalloway é uma personagem que resiste num mundo onde a mulher não possui o seu devido espaço, como Woolf, na maioria das vezes, lutou pelo seu espaço na literatura, assim como na vida pessoal. \”Mrs. Dalloway\” traz questionamentos que cabem tanto no seu tempo quanto nos dias de hoje e temos um grande exemplo de como Woolf usa as suas experiências e percepções internas brilhantemente nesta narrativa.
Foto: Virginia Woolf por Emil Otto Hoppé
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Sobre a autora:
Nasceu em Londres a 25 de janeiro de 1882, filha de Sir Leslie Stephen, escritor e historiador ilustre da Inglaterra vitoriana. Desde cedo ligada a grupos de intelectuais, Virginia Woolf casou, em 1912, com Leonard Woolf e com ele fundou a editora Hogarth Press, responsável pela revelação de autores como Katherine Mansfield e T. S. Eliot e pela publicação das suas próprias obras. Reconhecida como uma das mais proeminentes figuras do modernismo britânico, destacam-se entre os seus trabalhos os romances “Mrs Dalloway” (1925), “Orlando” (1928) e “As Ondas” (1931), assim como o ensaio “Um Quarto que Seja Seu” (1929). Após sucessivas crises depressivas e não suportando o isolamento provocado pelo agravar da Segunda Guerra Mundial, suicida-se a 28 de março de 1941, em Lewes.
Sugestão de Leitura:
Leitores residentes em Portugal:
“Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf (Livros do Brasil, Wook):
https://www.wook.pt/livro/mrs-dalloway-virginia-woolf/16066983
Leitores residentes no Brasil:
“Mrs. Dalloway”, de Virginia Woolf (Penguin-Companhia, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/mrs-dalloway-1-ed-2017/artigo/3c12d6c4-9c43-4d72-b0aa-c144d85174c5
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Boas leituras!