“O estrangeiro”, de Albert Camus

Sem qualquer espécie de dúvida, Albert Camus é um dos maiores nomes da literatura francesa do século XX. Sendo, “O Estrangeiro”, o seu romance de estreia, cuja publicação original ocorreu em 1942, o autor oferece-nos, logo à partida, uma narrativa curta e com uma escrita simples, ainda que ela fale de temas complexos como a condição humana. Mais tarde, em 1957, viria recebe o Nobel de Literatura, sobretudo, pela sua produção literária importante que, com lúcida sinceridade, ilumina os problemas da consciência humana nos nossos tempos\”. Foi traduzido em mais de quarenta idiomas e adaptado para o cinema por Luchino Visconti em 1967.

A humanidade experimentava o sabor bélico, amargo e tenebroso da Segunda Guerra Mundial quando Albert Camus publicou, em 1942, através da Gallimard, uma das maiores editoras francesas, este seu curto romance que nos apresenta, de forma abrupta, Meursault:

“Hoje, a mãe morreu. Ou talvez, ontem. Não sei bem. Recebi um telegrama do asilo: «Sua mãe falecida. Enterro amanhã. Sentidos pêsames.» Isto não quer dizer nada. Talvez tenha sido ontem.” — Albert Camus

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Fonte: Editora Livros do Brasil

Ao ler este primeiro parágrafo da narrativa, o narrador aparece-nos como um homem indiferente ao mundo que o rodeia. Para ele, até a morte da mãe é algo que não carece de qualquer importância.

No início, não existem muitos detalhes que nos sejam revelados. Ficamos a saber ele é um funcionário, que vive em Argel, a capital da Argélia, um país que, no ano da publicação deste romance, ainda era uma colónia francesa e pouco mais. E para instigar ainda mais a nossa curiosidade, o seu nome de batismo nunca é revelado.

Durante o velório no asilo, Meursault prefere apegar-se a pequenas coisas ao seu redor, nomeadamente, aos besouros, às luzes, às bengalas, aos cordões nas barrigas das senhoras e, ainda, às rugas e aos olhos pequenos dos velhos. Há uma clara sensação de distanciamento.

Outra coisa que me causou uma estranheza brutal foi o facto de ele atribuir tudo o que acontece, com a sua própria mãe, à força do hábito:

“Nos primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes, mas era por causa do hábito. Ao fim de alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito.”

Depois, logo na página seguinte:

“Pouco depois perguntou-me: «É a sua mãe quem ali vai?» Voltei a dizer: «Sim». Era muito velha? Respondi: «Assim, Assim», porque não sabia, ao certo, quantos anos tinha.” — Albert Camus

Depois de terminar a leitura, fico com a sensação que este texto respira actualidade. Nos dias de hoje, o ritmo frenético das vidas que temos, principalmente, nas cidades, leva-me a questionar o caminho que estamos a trilhar. Quantos idosos são abandonados nos lares, pelos próprios familiares, e, muitas vezes, quando falecem, aqueles que deveriam cuidar deles e protegê-los, tem esta mesma atitude?

“O que neste momento me interessa é fugir à engrenagem, saber se o inevitável pode ter uma saída.” — Albert Camus

Sabendo que, muito provavelmente, o seu fim estivesse perto e mantendo a sua filosofia de que tudo e todos, para ele, são estranhos, Meursault, por momentos, deseja sair daquele impasse em que se encontra.

Ao pesquisar para escrever este texto de opinião, curiosamente, reparei que a experiência de vida de Camus, em Paris, como jornalista da resistência para o jornal “Combat”, juntamente, com o facto de ele ter nascido, a em 1913, na Argélia, contribuíram fortemente para a escrita desta obra, já que ele se sentiu, literalmente, um estrangeiro, assim que chegou à Cidade-Luz.

Com este livro, Camus iniciou a trilogia do absurdo, sendo que a esta obra, marcadamente filosófica, seguiram-se ”O Mito de Sísifo”, um dos seus famosos ensaios, e a peça teatral, “Calígula”. Essa teoria diz que o absurdo é o ato de existir, já que a vida é desprovida de um projeto prévio, desprovida de um sentido e desprovida de uma finalidade, isto é, o homem é aquele que está diante do nada e tenta encontrar algum sentido para viver. “O Estrangeiro” é, igualmente, uma narrativa ligada ao Existencialismo, porém. o autor negou, sempre, essa ligação.

No que diz respeito à sua escrita, ela é simples, e existe, somente, um ponto de vista, o do protagonista, em primeira pessoa, ainda que fale de temas complexos como a condição humana. Já no que diz respeito à estrutura, a história divide-se em duas partes: Se, por um lado, primeira apresenta a personalidade de Meursault e revela a sua condição existencialista, por outro, a segunda narra, basicamente. o seu julgamento, após o crime que cometeu. Por essa razão, acabamos por estar diante de uma relação de causa e efeito.

Posso que esta obra, ainda hoje, é considerada, por muitos, como inovadora, pois, na época em que surgiu, os romances guiavam o leitor por uma sequência de acontecimentos organizada pelo romancista. Contudo, com esta narrativa, Camus rompeu, intencionalmente, com aquilo que estava estabelecido, uma vez que, pela primeira vez, é o leitor que tem que reflectir sobre as acções do protagonista, visto que, por todo o texto, diversas questões são levantadas e acabam por ficar sem qualquer resposta. Talvez, seja esse o motivo que a torna tão rica, dado ao elevado número de pontos de vista que a sua leitura pode suscitar e convidar ao debate.

Foto: Albert Camus por Cecil Beaton

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Sobre o autor:
Nasceu em Mondovi, na Argélia, a 7 de novembro de 1913. Licenciado em Filosofia, participou na Resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial e foi então um dos fundadores do jornal de esquerda Combat. Em 1957 foi consagrado com o Prémio Nobel da Literatura pelo conjunto de uma obra que o afirmou como um dos grandes pensadores do século XX. Dos seus títulos ensaísticos destacam-se \”O Mito de Sísifo\” (1942) e \”O Homem Revoltado\” (1951); na ficção, são incontornáveis \”O Estrangeiro\” (1942), \”A Peste\” (1947) e \”A Queda\” (1956). A 4 de janeiro de 1960, Camus morreu num acidente de viação perto de Sens. Na sua mala, levava inacabado o manuscrito de \”O Primeiro Homem\”, texto autobiográfico que viria a ser publicado em 1994.

Sugestões de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“O Estrangeiro”, de Albert Camus (Livros do Brasil, Wook):
https://www.wook.pt/livro/o-estrangeiro-albert-camus/15328334

Leitores residentes no Brasil:
“O Estrangeiro”, de Albert Camus (Editora Record, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/o-estrangeiro-36-ed-1997/artigo/78d7d437-ab09-4fd2-9132-878c85bfccc6

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Boas leituras!

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