Conhecida como “a profeta da distopia”, a canadiana Margaret Atwood esteve na Invicta, a princípio, para falar da importância da mitologia na sua vasta obra literária, no entanto, acabou por falar da sua infância, da liberdade que o Canadá lhe deu e, claro, da sua afirmação enquanto escritora, perante uma plateia maioritariamente jovem, devido ao sucesso estrondoso da adaptação televisiva do seu romance ”The Handmaid’s Tale” pela Hulu.
No próximo dia 18 de Novembro, Margaret Atwood completa 79 anos de idade. A convite do “Fórum do Futuro”, a autora passou pelo nosso país e, no Teatro Municipal do Porto – Rivoli . Campo Alegre, na cidade do Porto, perante uma sala onde os lugares vagos se contaram pelos dedos e os diversos idiomas provocaram um burburinho multicultural, a visionária, que previu a ascensão dos regimes totalitários, abordou o tema da sua infância, da liberdade que o Canadá lhe deu e a sua afirmação como escritora.
Atwood estreou-se na escrita de romances, em 1969, com “The Edible Woman”, publicado em Portugal, em 2002, sob o título de “A Mulher Comestível”, pela Livros do Brasil, e no Brasil, pela Globo Livros, ainda em 1987. Curiosamente, foi pela poesia que começou a sua carreira literária, em 1961.
A superprodução da Hulu permitiu que o mundo distópico, e assustadoramente possível, imaginado pela “profeta da distopia”, em 1985, apresentasse essa escritora às novas gerações, conferindo-lhe uma adoração mais do que familiar.
O que mais espanta é o enorme número de paralelismos com a situação política que se vive nas terras do Uncle Sam, sobretudo, devido à comparação entre a sociedade fundamentalista e misógina criada da escritora canadiana e a América pós-Trump.
A conversa foi moderada por Gareth Evans que introduziu a icónica contadora de histórias, de uma forma bastante bem-humorada, talvez, impulsionado pela viralidade da série “The Handmaid’s Tale”, dizendo: “Ela publicou mais de 60 livros. Repito, 60 livros. Não publicou um só.”
Momentos depois, a autora entra em cena, com um PowerPoint colorido, repleto de fotografias mas parco em descrições. Margaret confessa que “Numa outra vida, fui ilustradora. Aliás, aos 12 anos, o que eu queria era ser pintora”. E revela, entre outras, uma ilustração em que se auto-retrata como uma fusão de peixe, pássaro e mulher – através da qual explica que uma das coisas que mais a fascinava na mitologia grega eram as criaturas híbridas –, e outra em que vemos uma deusa a chocar o ovo do alfabeto – “Foi assim que nasceu o alfabeto, tenho a certeza que vocês sabem disso”, diz, arrancando risos.
De seguida, tal como se estivéssemos lado a lado, sentados num sofá a folhear álbuns de família, a respeitosa escritora, para muitos, vista como uma espécie de avó, faz uma revista à sua vida. E a narrativa começa com uma curiosidade.
Se compararmos a sua ficção e a sua realidade, conseguimos observar que, se por um lado, no universo criado pela autora na série que já ganhou oito Emmys, a mulher é a doméstica, a procriadora e a responsável pela manutenção de costumes opressivos, por outro, na vida real, a escritora cresceu exposta ao exemplo de uma mãe que era “maria-rapaz, adorava andar a cavalo e não gostava de trabalho doméstico, roupas, chapéus, luvas ou festas de chá”.
Por isso, acrescentou, “Portanto, casou com a pessoa certa”, referindo-se ao pai, um aventureiro entomologista florestal que dedicou a sua vida a estudar os insetos nas florestas do norte do Quebec, no Canadá. Quem sabe, se a sua inspiração para o mundo de “The Handmaid’s Tale”, ter crescido sem eletricidade ou água.
Na ponta da sua língua, através de narrativas cheias de humor, recordou a caça, a apanha de frutos silvestres, a recolha da madeira para o forno, as lagartas que tinha como animais de estimação e o irmão que levava cobras para dentro de casa. Entre risos, contou que “a maioria das crianças tinha medo de ursos, eu tinha medo de sanitas com descarga. Era assustador, as coisas desapareciam”.
Influenciada por Harold, o seu irmão mais velho, que lhe contava histórias, escrevia livros e desenhava heróis mitológicos, a autora ganhou o gosto pela arte.
Além disso, nos anos 50 do século passado, quando era adolescente, devorou livros de ficção científica. Desde aí, soube que queria escrever um, mas “um com uma narradora feminina, pois todos os que lia eram narrados por homens” – há sete anos conseguiu fazê-lo, finalmente, com “In Other Worlds”.
Disse, inclusivé, que mesmo antes de chegar à faculdade, já tinha lido “As Mil e Uma Noites”, e as colossais obras de Homero, a “Ilíada” e a “Odisseia”, aliás, foi esta última obra-prima da antiguidade clássica que a inspirou a escrever o seu livro mais mitológico, A Odisseia de Penélope, que descreve a odisseia do ponto de vista da esposa de Ulisses.
Em jeito de conselho para todos aqueles que queiram tornar-se escritores, hoje, Atwood não tem dúvidas de que “a mitologia faz parte da caixa de ferramentas fundamentais de um escritor” – “Se estás a tentar praticar qualquer arte ou engenho, precisas de saber quais são os teus ‘materiais de trabalho’. Tens de conhecer o que os escritores da tua geração estão a fazer, mas também tens de conhecer estas histórias, que são ‘à prova do tempo’”, sublinha.
Quando chegou a altura de a plateia colocar questões, a primeira foi: “O que é que se passa no Canadá para de lá saírem tantos artistas fantásticos, como Neil Young, Leonard Cohen ou Joni Mitchell? É o aborrecimento, é o ar, é a educação?”
Se num primeiro momento, Atwood retorquiu, em tom de brincadeira, “Nós devíamos tentar dominar o mundo”. Depois, falou mais a sério e refletiu:
“Acho que a razão por trás disso é que ninguém nos disse que não podíamos fazer o que quiséssemos. Nunca me disseram que eu não podia ser escritora, mesmo sendo mulher nos anos 50. Mas quando fui para os Estados Unidos, encontrei todas estas mulheres que achavam que o facto de eu querer ser escritora era algo muito audaz. Porque tinham a ideia de que elas não o conseguiriam fazer. No Canadá, ninguém nos queria empurrar para dentro de casa, como era habitual na América.”
Parece que a inspiração para criar as personagens femininas da sua aclamadíssima distopia não nasceu, somente, das freiras medievais e do vestuário da era vitoriana, a autora foi buscar referências para as vestes das personagens de “The Handmaid’s Tale” às embalagens de um produto de limpeza dos anos 40 chamado “Old Dutch Cleanser”, em que figurava uma mulher num vestido azul com uma chapéu que lhe cobria a cara:
“Na imagem, a mulher segurava um pau e era suposto parecer que ela estava a perseguir a sujidade. Mas, em criança, o que eu via era uma pessoa assustadora sem cara num vestido que lhe cobria tudo.” No que diz respeito à utilização do vermelho, ela foi buscá-lo à iconografia cristã, que “representa a Maria Madalena”, confidenciou a autora para desfazer a curiosidade de uma outra espectadora.
No que toca ao seus hábitos de trabalho, Atwood, resume-se como uma escritora “muito visual”. Prova disso é que durante o seu processo criativo, ela vai “desenhando pequenos rabiscos” e questiona, de forma clara, a existência do chamado “bloqueio criativo” – “Quando me acontece é, simplesmente, um sinal de que a história não está a funcionar”.
Quanto à ficção especulativa, o género literário no qual se enquadra a canadiana recomenda, entre outros, os livros “O Poder”, de Naomi Alderman, editado, em Portugal, pela Edições Saída de Emergência, “The Water Cure”, de Sophie Mackintosh e “The Water Knife”, de Paolo Bacigalupi, editado, no Brasil, pela Intrínseca. De forma divertida, sugere alguns dos seus filmes favoritos, divididos por géneros. “Blade Runner” é quem “vence” na área da ficção científica. Na específica categoria de filmes sobre vampiros, destaca “Let the Right One in”. E despede-se com uma sinopse humorística de um dos seus favoritos dentro dos filmes “espezinhados pelo Rotten Tomatoes” – “The Brain That Wouldn’t Die”.
No final, Gareth Evans concluiu: “Depois desta conversa, vamos todos para casa, sob a chuva desta noite de novembro, a pensar no que é que andamos a fazer com as nossas vidas.”
Boas leituras!