Para estrear o “Fado Pessoano”, uma série de posts que pretendem valorizar a figura e a obra de Pessoa, trago-vos a minha opinião sobre a magnífica obra “O livro do desassossego” editada pela Assírio & Alvim.
Pessoa, desde muito novo, escrevia as suas obras sob várias personalidades, começando a surgir indícios dessa característica, que tanto o diferencia dos outros escritores, aos 6 anos quando criou Chevalier de Pas.
Os heterónimos surgem como uma simulação ou a expressão de um talento prodígio, sendo que os três mais conhecidos são: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos.
As interrogações “Quem sou eu”; “ O que é ser eu” ou “ O que me distingue como ser, dentro do Ser” estão presentes no processo de criação destes heterónimos.
Bernardo Soares, protagonista deste livro, assemelha-se a Álvaro de Campos por se mostrar cansado e sonolento. É um semi-heterónimo por ser uma mutilação do próprio Fernando Pessoa. É este semi-heterónimo, o mais próximo do próprio poeta. Tanto que tantos críticos consideram esta obra, um “diário” em que o autor desabafa e reflete sobre problemas que o afetam a si e à sociedade.
Pessoa começa por descrever Bernardo Soares como “um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições, um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento indicava – parecia indicar várias privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.”
O guarda-livros nasceu no “tempo em que a maioria dos jovens havia perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os maiores a haviam tido – sem saber porquê”. O narrador refere que pertence a uma geração que vive à margem e que apenas vêem os grandes espaços.
Este livro são “impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.” Podemos lê-lo do meio ao fim, do fim ao meio ou do princípio ao fim. Cada um pode ler pela ordem que entender.
Na verdade, “O livro do desassossego” é um conjunto de fragmentos e reflexões do próprio Pessoa. Nesses fragmentos, o poeta dialoga sobre o sonho: “No sonho, não há o assentar da vista sobre o importante e o inimportante de um objeto que há na realidade. Só o importante é que o sonhador vê.”; do amor: “Nunca amei ninguém. O mais que tenho amado são sensações minhas – estados da visualidade consciente, impressões da audição desperta, perfumes que são uma maneira de a humildade do mundo externo falar comigo (…)”; sobre a própria existência: “Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer.”; da pátria: “Não tenho sentimento político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.”; dos heterónimos: “Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente. Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhando, encarnando numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não.”
É este livro que nos dá a conhecer a verdadeira personalidade de Pessoa. Um génio incompreendido pela sociedade do seu tempo. Mas que nunca parou de sonhar. E acreditar num Portugal melhor. Mantenhamos a sua memória viva.
Foto: Fernando Pessoa/Divulgação
Sobre o autor:
Nascido em 1888, em Lisboa, Fernando Pessoa publicou o seu primeiro artigo, “A nova poesia portuguesa sociologicamente considerada”, em 1912, na revista A Águia. Em 1914, escreveu os primeiros poemas dos heterônimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis, aos quais daria personalidades complexas. Sob o nome de Bernardo Soares, Fernando Pessoa escreveu os fragmentos mais tarde reunidos em “O Livro do Desassossego”. No ano seguinte, com escritores como Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro, lançou a revista de poesia de vanguarda Orpheu, marco do modernismo em Portugal e que daria grande projeção ao poeta. O único livro de poesia em português que publicou em vida foi “Mensagem” (1934), marcado pela visão mística e simbólica da história lusa. Fernando Pessoa morreu, a 30 de Novembro de 1935, em Lisboa.
Sugestão de leitura:
Leitores residentes no Brasil:
“Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa (Assírio & Alvim, Wook):
https://www.wook.pt/livro/livro-do-desassossego-fernando-pessoa/15927265
Leitores residentes no Brasil:
“Livro do desassossego”, de Fernando Pessoa (Companhia das Letras, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Livro-desassossego-Edi%C3%A7%C3%A3o-revista-atualizada/dp/6559215628
Boas leituras!