“Essa gente”, de Chico Buarque

Num romance ousado e coberto de uma inteligência admirável, Chico Buarque costura, com uma linha resistente, a decadência de Manuel Duarte, um escritor famoso que, no passado, ficou conhecido por alguns romances que tiveram muito sucesso e a decadência que atravessa toda a sociedade do Rio de Janeiro. Posso até afirmar, de todo um Brasil, se quiser alargar os horizontes. Com uma escrita simples mas, ao mesmo tempo, repleta de complexidade, visto que aborda temas como a pobreza, a violência, a negligência da classe política, que marginaliza os mais carenciados, e outros, “Essa Gente”, é construído com entradas de diário, que nos fazem navegar nos últimos anos de uma realidade urgente, que jamais pode ser esquecida e enterrada, e que nos devolve, em tom de alerta, o Brasil de agora.

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Fonte: Companhia das Letras Portugal

Nas 200 páginas da edição portuguesa de “Essa Gente”, o romancista conta-nos a história de um autor que atravessa um período menos glorioso da sua produção literária que, no passado, já conheceu dias bastante mais animadores.

Diria que este protagonista possui um traço curioso e, de certa forma, autobiográfico, se analisarmos o seu nome, Manuel Duarte, desvendamos que há uma semelhança na sonoridade que conversa com o nome do seu próprio criador, Chico Buarque. 

Estruturado em forma de diário, a narrativa passeia, de forma alternada, pelos últimos anos da realidade que se vive no Rio de Janeiro, onde este escritor reside, criando uma espécie de puzzle que. cabe ao leitor, montar, uma vez que não há uma linha cronológica definida, à partida.

No entanto, o período da narrativa, está compreendido entre dezembro de 2016 e setembro de 2019.

Como devem calcular, a falta de novos romances, nos últimos anos, assinados pelo célebre escritor, têm originado diversos problemas na sua vida, a começar, desde logo, pelos financeiros.

Por esse motivo, não é de estranhar que, o desespero o leve a pedir mais um adiantamento dos direitos de autor e, ao mesmo, ele peça desculpas ao editor pela imensa demora para enviar os originais: 

Não pense que me esqueci das minhas obrigações, muito me aflige estar em dívida com você. ­Fiquei de lhe entregar os originais até o fim de 2015, e lá se vão três anos. (…) Não bastassem os perrengues pessoais, ficou difícil me dedicar a devaneios literários sem ser afetado pelos acontecimentos recentes no nosso país. Já gastei o advance que você generosamente me concedeu, e ainda me falta paz de espírito para alinhavar os escritos em que tenho trabalhado sem trégua. (…) Estou ciente das severas condições do mercado editorial, mas se o amigo puder me adiantar mais uma parcela dos meus royalties, tratarei de me isolar por uns meses nas montanhas, a fim de o regalar com um romance que haverá de lhe dar grandes alegrias.” — Chico Buarque

Com este esforço, de proporções grandiosas, Duarte refugia-se em casa e, desce à rua, “sempre que as letras endurecem no papel, comprimidas entre si como as pequenas pedras em preto e branco do calçamento que piso”. 

Num jogo entre a comédia e a tragédia, vamos conhecer, de forma ainda mais profunda, os dilemas de Manuel Duarte, as relações que ele vai construindo, quer com o seu filho que é adolescente,  de quem ele se tenta aproximar; quer com as suas ex-mulheres, a Maria Clara, que desempenhou, há alguns anos, um papel vital na fama que ele adquiriu enquanto romancista; com a Rosane, que percorre as luzes da ribalta e se enreda na alta sociedade carioca; com a Denise, que está prestes a tornar-se, igualmente, uma ex-namorada, com o seu amigo Fúlvio Castello Branco, com o Agenor, um nadador salva-vidas possessivo, que tem Rebekkah, uma bela mulher holandesa, como esposa e, por último, com a sua própria mãe, que o abandonou em troca de mil e uma aventuras.

Para além desta sua falta de produção literária, a existência do protagonista, a par da solidão que está bastante presente, sobretudo, nos momentos em que lida com a pressão de terminar um romance que carrega, com ele, a sensação de que nunca vai ser finalizado, ela acaba por acompanhar, ainda que o faça, numa perspectiva de um mero espectador, a degradação de toda uma sociedade, em primeiro plano, no Rio de Janeiro, mas se quisermos alargar os horizontes, é algo que contamina todo um país. 

É uma realidade em que as pinceladas da escrita simples de Buarque, ganham corpo e um urgente sentido de alerta, devido aos temas que ele nos devolve: 

“Há manhãs em que desço as persianas para não ver a cidade, tal como outrora recusava encarar minha mãe doente. Sei que às vezes o mar acorda manchado de preto ou de um marrom espumoso, umas sombras que se alastram do pé da montanha até a praia. Sei dos meninos da favela que mergulham e se esbaldam no esgoto do canal que liga o mar à lagoa. Sei que na lagoa os peixes morrem asfixiados e seus miasmas penetram nos clubes exclusivos, nos palácios suspensos e nas narinas do prefeito. Não preciso ver para saber que pessoas se jogam de viadutos, que urubus estão à espreita, que no morro a polícia atira para matar. Apesar de tudo, assim como venero a mulher incauta que me deu à luz, estarei condenado a amar e cantar a cidade onde nasci.” — Chico Buarque

É importante salientar que todo este mundo que nos dilacera a alma e que nos faz mergulhar neste quadro pessimista que continua a pairar sobre a cidade, acontece durante as caminhadas de Duarte pelo Leblon, a favela do Vidigal. No entanto é algo transversal e demonstra um outro traço preocupante. Na minha opinião há uma crescente banalização da violência. 

É assustador pensar que para além da violência psicológica e física, a violência discriminatória, na forma do racismo, o abuso de poder, por parte de pessoas que deviam servir de exemplo ao Povo, como acontece, nomeadamente, com um pastor de igreja,  acentue, ainda mais, a decadência que se vive, diariamente. 

Foto: Chico Buarque por Luiz Maximiano

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Sobre o autor:
Francisco Buarque de Hollanda, mais conhecido como Chico Buarque, nasceu no Rio de Janeiro em 1944. Compositor, cantor e ficcionista, é um dos mais célebres e admirados artistas de língua portuguesa. Publicou várias peças de teatro, entre as quais a “Ópera do Malandro”, e uma novela antes de se estrear no romance, em 1991, com “Estorvo”, pelo qual recebeu o prémio Jabuti. Seguiram-se “Benjamim” (1995), “Budapeste” (2003) e “Leite Derramado” (2009), estes últimos distinguidos com o prémio Jabuti para melhor romance do ano. No mais recente romance publicado, “O Irmão Alemão” (2014), Chico Buarque relata a busca por um irmão desconhecido. Todos os seus romances estão publicados em Portugal pela Companhia das Letras, assim como “Tantas Palavras”, um livro que reúne todas as suas letras acompanhadas por um retrato biográfico escrito por Humberto Werneck. Em 2019 viu a sua obra literária reconhecida pelo Prémio Camões, a mais alta distinção para autores de língua portuguesa.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Essa Gente”, de Chico Buarque (Companhia das Letras Portugal, Wook):
https://www.wook.pt/livro/essa-gente-chico-buarque/23579755

Leitores residentes no Brasil:
“Essa Gente”, de Chico Buarque (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/essa-gente/artigo/248c319b-e483-4d9a-9853-bdc1ec056fdc

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Boas leituras!

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