O seu romance “Cai a Noite em Caracas” tem-se revelado um fenómeno editorial, em Espanha, visto que, em apenas, um mês, chegou à 5ª edição. Antes da sua publicação, 22 países, incluindo Portugal e o Brasil, compraram os direitos de publicação. Recém-chegado a Portugal, através da Alfaguara Portugal, esta narrativa visceral promete unir-nos ainda mais à Venezuela, fortalecendo a relação que começamos a construir por volta da década de 40 do século passado, com a partida de muitos portugueses para aquele país da América Latina. Nesse sentido, leiam a 2ª parte da entrevista com a jornalista e escritora Karina Sainz Borgo.
SEL – Voltando um pouco atrás, há pouco, falou de Fernando Pessoa, qual é a sua relação com a obra que ele deixou?
Karina Sainz Borgo – Para mim, “O Livro do Desassossego” é lindíssimo. Claro que a beleza é complexa. Gosto muito de Pessoa, sobretudo, os seus heterónimos e a sua relação com os outros. Comecei a lê-lo, quando era jovem, ainda em Caracas. Nessa época, já achava que a sua poesia carregava uma tremenda beleza. Parecia-me interessante a forma como ele respondia à questão: “Quantos é que nós poderemos chegar a ser?”. Aliás, tenho quase a certeza que o conheci antes de ler Saramago, pela primeira vez.
SEL – Tem algum ritual antes de começar a escrever?
Karina Sainz Borgo – Tudo tem que estar perfeitamente organizado e arrumado. De contrário, não consigo trabalhar num lugar que esteja desorganizado. Antes de começar a escrever este romance, passei um dia inteiro a limpar a casa. Disse a mim mesma, “Enquanto a casa estiver suja, não vou sentar-me a escrever.” Além disso, preciso de uma janela. É tal e qual como dizia Virginia Woolf: “Para escrever, uma mulher precisa de um espaço próprio e dinheiro”. E eu tenho essa sensação, como disse, preciso de uma janela. Preciso de luz porque, se não a tiver, afogo-me. Posso acrescentar que fumo bastante.
SEL – Quanto tempo levou para escrever “Cai a Noite em Caracas”?
Karina Sainz Borgo – Escrevi o livro em 2 anos.
SEL – Como foi, para si, o processo de criação das personagens?
Karina Sainz Borgo – Olha, eu já tinha a ideia muito clara de que Adelaida Falcón tinha que ser uma protagonista que me permitisse contar a história de uma geração. Em traços gerais, através da sua vida, eu vou contando a vida de um país.
SEL – Pode considerar-se que “Cai a Noite em Caracas” é um romance de formação, uma vez que acompanha a vida de uma personagem, desde a sua infância?
Karina Sainz Borgo – Não sei. Se, por um lado, é verdade que acompanha a vida da protagonista, por outro, o facto de eu poder criar uma biografia, permitiu-me não colocar datas nem o meu nome. Com a passagem do tempo, começa a perceber-se que existe uma sociedade que era democrática e passa a ser totalitária. Claramente, uma sociedade muito complexa, repleta de muitas diferenças e desigualdades sociais. Aliás neste romance há algo que, para mim, é um elemento-chave. O facto de as vítimas, muitas vezes, se comportarem como tiranos e os tiranos também serem vítimas. E Adelaida, para conseguir sobreviver vai ter que fazer coisas com as quais, à partida, ela não estaria de acordo. Desta forma, esta sua atitude coloca-te perante uma sociedade que sofre do pior mal que existe: a violência. Naturalmente, queria contar uma história com muita beleza. Curiosamente, tenho um amigo que me disse que, para ele, este livro é “realismo trágico”.
SEL – De certa forma, “Cai a Noite em Caracas”, mesmo não sendo uma distopia, faz-me lembrar de “1984”, de George Orwell. O que pensa sobre essa possível interpretação por parte dos seus leitores?
Karina Sainz Borgo – A ditadura que está a decorrer na Venezuela tem um traço populista e por isso, de certa forma, o “Grande Irmão” está lá. O que se passa é que Orwell escreveu uma obra que pode ser considerada “profética”. Ele diagnosticou uma sociedade totalitária e, por essa razão, é que escrevi, logo no início deste meu livro, que a primeira vítima é a linguagem. Essa é a primeira arma que funciona num estado totalitário. É através dela que são criados níveis repressivos, pois, acabas por criar um oponente, que assiná-las, e ele passa a ser “o inimigo”, “o antirrevolucionário”, etc. Assusto-me quando me dizem que este livro é uma distopia, que decorre num cenário apocalíptico. Isso acontece porque a narrativa está construída com alegrias, de certa forma, como José Saramago fez com “Ensaio sobre a Cegueira”. No entanto, eu queria que este livro tivesse um lado mais literário e não fosse visto como um livro político ou jornalístico.
\”Todo o processo totalitário cria uma ficção sobre a igualdade, sobre a democracia e a liberdade que são palavras que são esvaziadas do seu significado original para as preencher com as suas ideologias.\” — Karina Sainz Borgo
SEL – Como é que foi o processo para o seu livro chegar a Portugal?
Karina Sainz Borgo – Eu tenho uma agência literária e eles encarregam-se de promover o livro para outros países. Além disso, a partir do momento que a Harper Collins, nos Estados Unidos, a Einaudi, em Itália, a Fischer, na Alemanha, e a Gallimard, em França, compraram os direitos de publicação do livro, com o crescente interesse demonstrado, a agência que me representa, pelo facto de existir uma grande homenagem aos portugueses que vivem na Venezuela, juntou esforços e decidiu traduzir o livro, um gesto que, na minha opinião, foi muito valioso. Rio-me e fico feliz quando chego a Portugal e observo que, tal como acontecia na Venezuela, onde os padeiros na sua maioria, eram portugueses, o pão tem o mesmo cheiro e o mesmo sabor e isso devolve-me, outra vez, aos tempos da infância.
SEL – Qual é o feedback que está a ter dos leitores?
Karina Sainz Borgo – É um feedback muito positivo. Creio que as pessoas compreenderam que esta não é uma história venezuelana, somente. Aliás, eu quis que ela fosse universal. e acho que o público está a entender o livro tendo essa chave como base. Em Espanha, ele já está na 5ª edição. Teve apoio de pessoas muito generosas tais como Fernando Aramburu, autor de “Pátria”, que gostou muito deste romance. Ele escreveu sobre ela e promoveu-a. Em Itália, que foi o primeiro país onde foi publicado, a nível internacional, vai para a 2ª edição. Agora são vocês, aqui, em Portugal. Curiosamente, saiu quase em paralelo com o Brasil. Acredito que, no Brasil, tenham interesse no livro. Em relação a Portugal, vamos ver o que acontece. Na minha opinião, o livro pode resultar em algo muito próximo dos portugueses, devido relação que têm com a Venezuela. Contudo, não descarto que a ditadura que Portugal viveu, na época de Salazar, pode vir a ser uma outra linha de aproximação para os leitores.
\”Leia, que leia muito e que nunca pare de o fazer. Um escritor que não lê é um escritor sem fome. Ler torna-te um ser completo. Eu tenho a sensação que, hoje em dia, com o excesso de redes sociais, de fotografias, de selfies, nós renunciamos ao direito de sermos complexos. Ler torna-te tolerante, complexo, permite que renuncies à estupidez. Quanto mais lês, maior é a sensação de que o mundo é enorme e que há a necessidade de o descobrir.\” — Karina Sainz Borgo
Para quem ainda não leu a primeira parte da entrevista que fiz com a autora, deixo o link:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/entrevista-com-karina-sainz-borgo-autora-de-cai-a-noite-em-caracas-parte-1/
Foto: Karina Sainz Borgo por Francisco Romão Pereira
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Sobre a autora:
Nascida em Caracas, no ano de 1982, Karina Sainz Borgo é escritora e jornalista cultural. A autora, que vive em Espanha, há mais de uma década, iniciou a sua carreira no jornal venezuelano El Nacional. Actualmente, colabora com publicações como El Mundo, Folha de S.Paulo e o digital Vozpópuli. É autora dos livros de crónicas “Tráfico Guaire” e “Caracas hip-hop”, ambos de 2008. “Cai a Noite em Caracas” é o livro que marca sua estreia na ficção, tornou-se num bestseller imediato em terras espanholas, dado que contou com cinco edições num único mês e teve os seus direitos vendidos para 22 países.
Sugestão de Leitura:
Leitores residentes em Portugal:
“Cai a Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Alfaguara Portugal, Wook):
https://www.wook.pt/…/cai-a-noite-em-caracas-karin…/23130757
Leitores residentes no Brasil:
“Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Editora Intrínseca, Livraria da Travessa:
https://www.travessa.com.br/…/457da803-b0af-4796-873e-11263…
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Boas leituras!