Entrevista com Karina Sainz Borgo, autora de \”Cai a Noite em Caracas\” – Parte 1

Numa conversa descontraída que teve lugar, na última segunda-feira, na sede da Penguin Random House Portugal, o Sonhando Entre Linhas teve o prazer de estar à conversa com Karina Sainz Borgo, a jornalista e autora de “Cai a Noite em Caracas”, que chegou, às livrarias portuguesas, no passado dia 4 de junho. Com a presença confirmada na Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, a autora, que passou por Lisboa, salientou que apesar de se ambientar em Caracas, esta é \”uma narrativa universal, sobre a culpa de ser uma sobrevivente de um regime totalitário e, ao mesmo tempo, uma homenagem a todos os imigrantes portugueses, espanhóis e italianos que, nos anos 40, ajudaram a construir um país e que, de forma irónica, se viram obrigados a fazer o caminho de regresso aos países dos seus pais.”

SEL – O que me pode dizer sobre as suas origens e, para quem não a conhece, como é que elas a formaram como pessoa?
Karina Sainz Borgo –
Eu nasci em Caracas, sou filha de espanhóis e os meus avós, que eram republicanos, durante a Guerra Civil, tiveram que fugir. Foram para a Venezuela e, de alguma forma, para eles, Espanha sempre foi um tema sem resolução. Nunca regressaram nem quiseram falar sobre o país. Em 2006, eu tinha 24 anos, estudei Jornalismo e trabalhei como jornalista na Venezuela, mas, numa época, em que eu não reconhecia o meu país, nem ele me reconhecia a mim. Por isso, decidi ir para Espanha, onde vivo há 13 anos, para trabalhar. Tal como Espanha, para os meus avós, foi um tema difícil, para mim, a Venezuela acabou por se tornar num tema, igualmente, doloroso. Em boa medida, eu acredito que a minha relação com a escrita está muito marcada por essa sensação de desenraizamento e dor. Ainda assim, sinto que a minha relação com a literatura é, praticamente, para lê-la. Para o meu crescimento, enquanto pessoa, acredito que nasci num lugar onde se lia muito e isso marcou, também, uma vocação e uma relação muito próxima com a escrita e com a leitura. Aliás, eu penso que estudei Jornalismo, exatamente, por essa razão, porque achava que era a forma mais enriquecedora de me aproximar de uma história, de personagens, de pessoas. Diria que, até certo ponto, “Cai a Noite em Caracas” (“Noite em Caracas”, título adotado, pela Editora Intrínseca, no Brasil), é uma consequência de toda a exposição que tive, que vivi em todos estes anos e que, para mim, foi algo importante, sobretudo na hora de narrar o que se tinha passado. Por outro lado, não te vou negar que, apesar do livro se desenvolver na Venezuela, esta é uma história mais ampla, mais universal. É uma narrativa sobre a sobrevivência, sobre aquilo que temos de fazer para sobreviver e, principalmente, sobre a culpa que se gera por ter sobrevivido a um regime totalitário ou repressivo.

SEL – Como é que se tornou leitora?
Karina Sainz Borgo –
Como disse anteriormente, creio que nasci num lugar onde se lia muito. No entanto, quando caiu, nas minhas mãos, em criança, Roald Dahl, não pude deixar de ler. Para ser sincera, acho que foi este autor que me converteu em leitora. dos seus livros, o que mais gosto é “Danny – O Campeão do Mundo”. Quando comecei a crescer, com o passar do tempo, li, naturalmente, a maioria dos autores que estiveram envolvidos no “Boom” da literatura latino-americana: Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Mário Vargas Llosa, Juan Rulfo, Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato. Curiosamente. agora que sou adulta, por exemplo, gosto muito mais da poesia de Borges do que quando era mais jovem. Além disso, devo dizer que encontro, nos seus poemas, uma beleza tremenda. Na abertura do meu livro, existe uma frase do autor. À medida que fui crescendo, também me aproximei da literatura anglo-saxónica.

SEL – A partir de que momento é que percebe que a leitura é algo que queria fazer para toda a vida?
Karina Sainz Borgo –
Foi, por volta dos 8 anos, quando comecei a ler Roald Dahl. Para mim, a minha avó foi muito importante, na medida em que ela lia muita poesia, e escrevia de uma forma muito sensível. Por esse motivo, foi algo que marcou a minha infância e a minha irmã, porque quando estávamos aborrecidas, escrevíamos alguns versos. São esse tipo de coisas que te vão tornando positivamente disposto a ler e a escrever. Se bem que te vou dizer uma coisa. Creio que me tornei escritora porque, bom, talvez seja uma explicação muito infantil, mas, em criança, na escola, coloquei-me em sarilhos, visto que insultei uma professora por escrito. \”Esta professora é um aborrecimento” e a minha mãe, após ter descoberto o meu papel, disse-me: “A próxima vez que quiseres escrever algo, toma este caderno.” Acredito que este conselho também me influenciou.

SEL – Sem revelar muito, o seu livro tem uma frase marcante da autoria de Juan Gabriel Vásquez, o que nos pode dizer sobre o autor?
Karina Sainz Borgo – O Juan Gabriel Vásquez é um autor que me interessa muito, visto que, por ser colombiano, de certa forma, nós, os venezuelanos, temos uma relação próxima, na medida em que a violência é uma característica muito presente em ambos os países. Admiro as suas reflexões sobre a violência, sobre a memória. Acima de tudo, ele é um escritor bastante político e isso é algo que me fascina.

SEL – A viver em Madrid, há mais de uma década, em termos literários, existem autores que se tenham tornado importantes?
Karina Sainz Borgo – Para mim, desde que vim para a Europa, existem dois autores que têm sido particularmente importantes. Primeiramente, Thomas Bernhard, um autor que me tem ajudado a perceber melhor o meu desenraizamento, e, depois, J. M. Coetzee, vencedor do Prémio Nobel de Literatura, em 2003, já que li “Desgraça” e “À Espera dos Bárbaros”, quando estava na casa dos 20 anos e, desta forma, senti que se abriu um novo mundo para mim. Outra autora que gosto bastante, e que, por sinal, também é sul-africana e vencedora de um Prémio Nobel de Literatura, é Doris Lessing. Na minha opinião, foram estes autores que me guiaram e, literariamente falando, me colocaram problemas que me interessavam explorar.

\”Quantos imigrantes europeus foram para a Venezuela, nos anos 40, e ajudaram a construir um país que aspirava à modernidade e que acabou por se sepultar num regime autoritário?\” — Karina Sainz Borgo

SEL – Procurou inspiração neste tipo de literatura para este seu primeiro romance?
Karina Sainz Borgo –
Pode ser que “La Hija de la Española”, que é o título original em Castelhano, siga essa lógica. Por isso é que defendo, de forma persistente, que esta é uma história universal. Quando lês, a título de exemplo, “À Espera dos Bárbaros”, tal como este livro, estás perante uma alegoria. Se, por um lado, a Mãe é uma alegria da Pátria, de um país, por outro, a Marechala é uma alegoria do Poder, principalmente, do poder excessivo. Através deste livro, eu pude contar toda a história da imigração.

SEL – É a primeira vez que vem a Portugal?
Karina Sainz Borgo –
Não, mas é a primeira vez que estou em Lisboa. Antes, já tinha ido ao Porto.

SEL – E o que achou da cidade?
Karina Sainz Borgo –
O mais lindo que a cidade tem é a luz. A luz lisboeta é lindíssima. Por isso, penso que Fernando Pessoa tinha razão.

\”A comunidade portuguesa, na Venezuela, é muito grande e possuem uma relação muito bonita com o país e, nós, com eles. Porque acho que a nossa identidade está construída com base na mistura de todos estes imigrantes. Existem muitas relações com Portugal. O mesmo acontece com Espanha, onde existe uma relação muito próxima com o vosso país.\” 

SEL – Aproveitando a oportunidade para falar de literatura portuguesa, como é que vê a obra deixada por José Saramago?
Karina Sainz Borgo – Eu adoro Saramago. Recordo-me que o primeiro livro dele que li foi “Ensaio sobre a Cegueira”. Um livro que me provocou um grande ataque de ansiedade, quando comecei a ler, estava muito nervosa, mas, ainda assim, não o consegui largar. A verdade é que ele me parece ter sido um homem brilhante. Além disso, tinha uma conceção muito humanista.

SEL – Na minha opinião, vejo uma certa relação, em termos literários, entre José Saramago e Gabriel García Márquez. Qual é a sua opinião?
Karina Sainz Borgo – Sim, eles têm elementos em comum e uma forma de escrever muito semelhante, ainda que tenha sido trabalhada, por ambos, de maneiras diferentes. No entanto, concordo contigo, visto que, para mim, eles partilham uma geografia literária comum.

SEL – Para mim, os livros deles que mais conversam, entre si, são “Memorial do Convento” e “Cem Anos de Solidão”. Qual é a sua opinião?
Karina Sainz Borgo –
Sim, acho que abordam o tema do sonho, da fantasia, e têm um lado muito relacional. Penso que essa característica está muito presente, também.

SEL – Sei que é uma das autoras com presença confirmada na FLIP, no Brasil. Está muito ansiosa?
Karina Sainz Borgo –
Sim. tenho muita vontade. Porque, acima de tudo, o Brasil não é um país enorme apenas, uma vez que possui uma riqueza cultural tremenda. Posso dizer que, em certa medida, há um grande imaginário literário. Isso deve-se a autores como Jorge Amado e, de certa forma, Clarice Lispector, mesmo não tendo nascido lá, eu considero-a uma escritora que contribuiu muito para o “boom” da literatura latino-americana. Contudo, acho que não lhe foi dado, em vida, o merecido valor dentro desse panorama. Aos meus olhos, a reedição de toda a sua obra e a sua biografia, demonstraram-me que ela era dotada de uma sensibilidade impressionante.

SEL – Para além dos autores brasileiros que já citou, há mais algum que goste?
Karina Sainz Borgo –
Eles são os autores brasileiros com quem tenho uma relação mais próxima. Sabes o que se passa? Ainda que não pareça, a literatura da América Latina não é uma unanimidade, dado que não nos lemos uns aos outros. É muito mais provável que eu leia um argentino, um mexicano ou um colombiano do que um autor brasileiro, sobretudo, devido à barreira linguística e isso, no meu ponto de vista, é algo que nos impede. Diria que isso ocorre, de igual forma, com o Brasil e é por isso que tenho tanta vontade de ir e de me aproximar deles.

SEL – Portugal e Espanha também têm diferenças linguísticas. Todavia, vejo uma relação mais próxima do que aquela que abordamos na questão anterior. O que é que, na sua opinião, marca a diferença?
Karina Sainz Borgo –
Sim, é verdade. Porém, Saramago já dizia que tínhamos que recuperar a Península Ibérica e a união entre os dois países. Afinal, estamos um ao lado do outro. A meu ver, são circunstâncias diferentes. Primeiramente, creio que esta proximidade é um fator importantíssimo. Adicionalmente, ao contrário de Portugal e Espanha, a maioria dos países da América Latina são países “jovens”, o que faz com que a nossa história seja muito mais pequena.

Foto: Karina Sainz Borgo por Francisco Romão Pereira

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Sobre a autora:
Nascida em Caracas, no ano de 1982, Karina Sainz Borgo é escritora e jornalista cultural. A autora, que vive em Espanha, há mais de uma década, iniciou a sua carreira no jornal venezuelano El Nacional. Actualmente, colabora com publicações como El MundoFolha de S.Paulo e o digital Vozpópuli. É autora dos livros de crónicas “Tráfico Guaire” e “Caracas hip-hop”, ambos de 2008. “Cai a Noite em Caracas” é o livro que marca sua estreia na ficção, tornou-se num bestseller imediato em terras espanholas, dado que contou com cinco edições num único mês e teve os seus direitos vendidos para 22 países.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Cai a Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Alfaguara Portugal, Wook):
https://www.wook.pt/…/cai-a-noite-em-caracas-karin…/23130757

Leitores residentes no Brasil:
“Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Editora Intrínseca, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/…/457da803-b0af-4796-873e-11263…

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Boas leituras!

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