Entrevista com Jeferson Tenório, autor de “O avesso da pele”

Com o seu terceiro livro, Jeferson Tenório é, cada vez mais, um autor consolidado no Brasil e, a meu ver, uma das vozes mais fortes e promissoras da literatura negra que surge do outro lado do Atlântico. Depois de \”O beijo na parede\” e \”Estela sem Deus\”, \”O avesso da pele\”, que marcou a sua estreia na Companhia das Letras, é um forte candidato a arrecadar os principais galardões literários canarinhos neste ano de 2021. Para mim, este seu romance poderoso, inventivo e visceral foi a minha melhor leitura de 2020. Nesse sentido, ter tido a oportunidade de entrevistar o autor, foi um prazer e uma honra. É importante realçar que este romance vai ter a sua edição portuguesa pela Companhia das Letras Portugal e deve chegar às livrarias no próximo mês de março.

I – Origens & Hábitos de Leitura

SEL – O que pode revelar das suas origens para todos aqueles que não o conhecem?

Jeferson Tenório – Nasci na cidade do Rio de Janeiro. Aos 13 anos, mudei-me com a família para Porto Alegre, cidade que fica no sul do Brasil. Formei-me em Letras e conclui o mestrado. Atualmente, faço doutorado em literaturas luso-africanas. Em 2013, publiquei “O beijo na parede”, o meu primeiro romance. Em 2018, veio o segundo, “Estela sem Deus”. E, em 2020, lancei “O avesso da pele”. 

\”Fui um leitor tardio. Os livros não fizeram parte da minha infância. Serviam como objetos de decoração. Aos 22 anos entrei na faculdade, no curso de letras e ali tive acesso a literatura ocidental. Fiquei encantado e assombrado com Homero, Cervantes e Shakespeare.\” — Jeferson Tenório

SEL – Na sua família, tem alguém que goste de ler?
Jeferson Tenório – A minha mãe e a minha irmã se tornaram boas leitoras com o passar dos anos. A minha mãe, inclusivé, também escreve poemas e contos. Mas nada se compara ao meu filho João. Ele tem 10 anos. No último Natal, ele disse que queria um livro de presente. Dei, a ele, uma adaptação para crianças do \”Em Busca do Tempo Perdido\”, de Marcel Proust. Ele devorou o livro em poucos dias. É um grande leitor!  

SEL – Você se lembra de qual foi o primeiro livro que leu na íntegra?
Jeferson Tenório – Aqui, no Brasil, existia uma coleção de livros chamada Vagalume, eram livros para o público infanto-juvenil, lembro que o livro “As Aventuras Xisto”, da escritora Lúcia Machado de Almeida, foi um dos únicos que li, por inteiro, na adolescência.

\”Como leitor, todos os gêneros me interessam. Como escritor, a narrativa longa me satisfaz mais. Talvez, por pura necessidade e a precariedade de não conseguir ser econômico com as palavras quando crio histórias. O conto e o poema exigem um grande poder de síntese. A escolha da palavra se torna mais dramática. Tanto o conto, quanto o poema exigem palavras mais assertivas. Por isso, faço romances, porque talvez tenha essa predileção por errar palavras.\” — Jeferson Tenório

SEL – Num mundo cada vez mais globalizado, como vê o aumento de produção de e-books?
Jeferson Tenório – Acho que é mais uma tecnologia ao serviço da literatura e da formação de leitores. O livro físico não vai acabar. Acho importante que as versões digitais e físicas coabitem para o bem da literatura.

II – Os primeiros passos na escrita

SEL – A sua decisão de começar a escrever aconteceu por acaso, ou surgiu como uma necessidade?
Jeferson Tenório – Eu acho que sempre foi uma necessidade. Aos 18 anos, escrevi uma novela chamada \”O perdão do destino”. Na época, eu não era um bom leitor, mas me encantava criar histórias. A novela tinha cerca de 200 páginas escritas á mão, porque eu não tinha máquina de escrever nem computador. Era uma história muito precária do ponto de vista estético, mas acho que era uma espécie de ensaio para a minha vontade de escrever literatura.

SEL – Tem algum ritual que você faz antes de começar escrever?
Jeferson Tenório – Sim, leio poemas. Sempre volto ao Walt Whitman. Também ouço músicas como Erick Saltie ou Phillip Glass antes de começar. Tanto a música quanto a poesia me sensibilizam para regressar à literatura. Tento enxergar a vida literariamente, todos os dias, quando me levanto. No entanto, as coisas do trabalho e do cotidiano nos afastam da criação. Fazer literatura é o acontecimento do meu dia. Por isso, preciso preparar-me para ela. A literatura nunca é trivial para mim. Quando me sento à frente da tela é porque já percorri o trajeto da delicadeza para começar a escrever.  

III – Carreira como escritor

SEL – O que gostaria de ter sabido antes de ter começado a sua carreira?

Jeferson Tenório – Que ler é mais importante do que escrever. Sempre.

\”Leia. Leia o máximo que puder. Não se preocupe com a publicação. A publicação virá. É uma consequência do seu trabalho. A leitura é o alicerce do escritor.\” — Jeferson Tenório

SEL – Está a preparar algum livro novo? Se sim, o que nos pode contar sobre ele?
Jeferson Tenório – Estou no início de um novo romance que se passa dentro de uma universidade no sul do país. Pretendo narrar a história de uma geração de estudantes negros nesse ambiente hostil do mundo acadêmico. Por enquanto, é o que posso dizer. 

IV – O avesso da pele

\”É difícil, para mim, precisar o momento em que as ideias surgem. Eu também gostaria de descobrir de onde vêm as ideias para os romances, mas elas são um mistério para mim. O facto é que pensava nesse romance há muito tempo, mas julgava um romance impossível. Então, em 2016, comecei pôr a algumas dessas ideias no papel. Quatro anos depois, ele estava pronto.\” — Jeferson Tenório  

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Fonte: Companhia das Letras

SEL – Como é que organizou as ideias para escrever este livro? Fez um outline, esquemas, construiu uma linha temporal?
Jeferson Tenório – Não trabalho com esquemas, gráficos, tabelas ou com arvores genealógicas. O meu método é o caos. Início a história e, depois, crio outra cena que aparentemente não tem a ver com a que vinha produzido, depois, volto ao começo. Não desperdiço as ideias que me vêm, mesmo que pareçam desconectadas. É na reescritura que sou mais disciplinado. Sou capaz de permanecer um dia inteiro numa frase ou num parágrafo. Não tenho pressa para terminar, mas tenho urgência em escrever.

SEL – Em que momento é que você decidiu o título deste livro? Antes de escrever, durante a escrita ou apenas com o manuscrito pronto?

Jeferson Tenório – Desde o início que o título sempre foi esse. No entanto, era um título provisório. Tanto que terminei o livro e ainda procurava um título que me convencesse. Li e reli o livro, diversas vezes, mas conforme o tempo passava o título foi se impondo de modo que não tive saída e tive de aceitar “O avesso da pele”.

SEL – Sendo este um livro que fala sobre temas tão importantes e tão atuais como o racismo, o conceito de negritude, a busca de identidade, as relações familiares, a violência e a fragilidade do sistema público de ensino, sendo um professor de literatura, tal como um dos personagens, qual acha que é o principal ponto a melhor na sociedade de Porto Alegre?
Jeferson Tenório – Creio que, para além das questões atuais, a literatura tem um compromisso com questões existenciais. “O avesso da pele” dialoga com os problemas do nosso tempo, mas o que me interessa é a possibilidade da investigação afetiva. Promover esse inventário sentimental do luto. Trazendo-o para Porto Alegre, acredito que as questões raciais se tornam mais agudas e visíveis. Vivemos em uma cidade que ainda não conseguiu lidar com o seu passado escravagista e isso tem reflexos no presente. 

\”Escrever é sempre difícil. É um jogo de entusiasmo e frustração. Você erra e acerta. Vai tateando no escuro à procura de um narrador. Existe algo mais bonito que isso? Alguém tateando no escuro atrás de um narrador? Essa busca para mim é o maior desafio. Encontrar essa voz. Em O Avesso da Pele, tenho um narrador em primeira pessoa, disfarçado de segunda, pois a foi única forma que encontrei para contar essa história. A única forma possível. Sentia que não poderia levar o livro inteiro numa narração em segunda, pois certamente correria o risco de criar um narrador cansado, aquele que vai perdendo o vigor narrativo. Precisava de uma certa dinamicidade para imprimir um grau maior de fluência.\” — Jeferson Tenório

SEL – Como reagiu ao saber que este romance vai ser adaptado para o cinema?
Jeferson Tenório –
Os direitos para o filme foram adquiridos pela produtora RT Features. Foi uma surpresa muito agradável. Nunca imaginamos onde um livro pode parar. Fico imaginando os meus personagens ganhando vida de outro modo. Estou animado para ver o resultado.  

SEL – Depois dos romances “O beijo na parede” e “Estela sem Deus”, este é o seu terceiro romance. Como vê o impacto dos autores negros na literatura brasileira contemporânea?
Jeferson Tenório – Acho que vivemos um bom momento para os autores negros contemporâneos. Não creio que seja apenas uma onda ou algo passageiro. Sinto que a sociedade está mudando, ainda que tenhamos retrocessos, no nível político no Brasil, com um governo genocida e fascista. Acredito que estamos a caminho de boas mudanças através da literatura também. Além disso, existe uma demanda para literatura produzida por autores negros, porque trazem outras narrativas que, por muito tempo, foram silenciadas em função do racismo. 

V – Publicação

\”O livro tem tido uma boa repercussão. Antes mesmo do seu lançamento, «O avesso da pele» já havia sido vendido para o cinema, com traduções encaminhadas. Foi escolhido como o livro do ano por diversos veículos especializados em literatura. Diariamente, recebo depoimentos de leitores comovidos com a história. Estou feliz. Mas sigo escrevendo. O reconhecimento é bom, mas não se pode perder de vista o compromisso com a escrita.\” — Jeferson Tenório

SEL – Para terminar, o que diz o seu “eu literário”, neste momento?
Jeferson Tenório – A vida e a literatura, por vezes, se confundem. É por isso que escrevo porque não sei bem o que uma e o que é a outra. 

Foto: Jeferson Tenório por Carlos Macedo

Sobre o autor:
Nasceu no Rio de Janeiro, em 1977. Radicado em Porto Alegre, é doutorando em teoria literária pela PUCRS. Estreou-se na literatura com o romance “O Beijo na Parede” (2013), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. Teve textos adaptados para o teatro e contos traduzidos para o inglês e o espanhol. É autor também de “Estela sem Deus” (2018). “O Avesso da Pele” é a sua estreia na Companhia das Letras.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes no Brasil:
“O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/o-avesso-da-pele-1-ed-2020/artigo/34ae205b-6f7e-47f2-9122-d782c94e26f3

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Boas leituras!

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