“Encontro você no oitavo round”, de Caê Guimarães

Romance que eu já tinha debaixo de olho, após ter conquistado o Prêmio Sesc de Literatura de 2020, \”Encontro você no oitavo round\” (ed. Editora Record), da autoria do carioca Caê Guimarães, mescla pugilismo, escrita, filosofia e vislumbres de uma realidade repleta de miséria humana.

Pessoalmente, eu não conheço muitas obras literárias que abordem o universo do boxe. Para ser sincero, neste momento, só me recordo de \”Clube da Luta\”, do escritor norte-americano Chuck Palahniuk. 

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\”Encontro você no oitavo round\”, de Caê Guimarães (vencedor do Prémio Sesc de Literatura 2020 na categoria de Romance,
ed. Editora Record, 144 páginas)

Quando li, durante uma das minhas pesquisas de temas para os posts deste blog, no ano de 2020, que \”Encontro você no oitavo round\” tinha vencido a edição daquele ano do Prémio Sesc de Literatura, na categoria de Romance, fiquei curioso. Naturalmente, Sabemos que o mundo do boxe possui um ambiente violento e essa característica está bem presente em muitos trechos deste texto.

Ao longo das suas páginas, o leitor viaja pela vida de Cristiano Machado Amoroso, um boxeador profissional de 40 anos. Em tempos, no seu passado, ele chegou a ser escritor, ainda que, de certa forma, tenha tido uma reputação quase inexistente, apesar de ele ter escrito três livros de poesia e ter deixado um romance inacabado.

Todavia, a partir de um certo acontecimento, Amoroso começa a participar de lutas clandestinas quase sem regras, aceita dinheiro em troca de derrotas e outras práticas semelhantes.

Entretanto, há um momento marcante visto que, de cada vez que ele está prestes a subir ao tablado, surge um zumbido:

\”Há principalmente um zumbido que vai e vem. Começa grave, gordo e lento, mas à medida que o tempo avança se torna mais agudo e menos espaçado. Ele se instala no corredor do meu ouvido esquerdo. Caminha até o meio da cabeça e retorna. Fica então a sensação de que o bicho vai embora, mas que nada. Ele volta. Indesejado e paciente. Esparrama-se como quem chega por acaso. E em questão de horas toma conta de todas as minhas reações, provocadas no começo por uma batida distante e ritmada, que evolui para um estremecer pastoso, quase confortável. Acontece por alguns minutos, mas a essas passadas sobrevém o silêncio.\”
— Caê Guimarães

No ponto de partida escolhido por Caê, em termos temporais, nós, os leitores, encontramos o protagonista a poucas semanas do seu último combate, ou seja, está a caminhar a passos largos rumo ao fim da sua carreira de vários anos, durante a qual só foi nocauteado uma única vez.

Outro dos pontos fortes é que nesta narrativa que, em vários momentos é poética, existe, em paralelo, uma sincronização incrível entre o gingado do decadente protagonista Cristiano Machado Amoroso, devido à sua capacidade de observação, e uma escrita ágil, precisa, fluída e visceral tal como os movimentos que ele executa nas suas lutas. Tudo isto nos atinge das mais variadas formas em menos de 150 páginas. Ainda assim, engana-se quem pensar que este romance se esgota somente na temática do boxe.

Curiosamente, tal como aconteceu na minha leitura anterior, \”Diário de Inverno\”, de Paul Auster, volto a reencontrar a mesma ideia, desta vez, no que diz respeito à forma como Caê se refere às cicatrizes marcadas no corpo do boxeador: toda cicatriz é um texto que conta uma história.

A meu ver, a questão central desta história é muito mais profunda. Diria que o boxe funciona quase exclusivamente como algo que está à superfície. Na minha opinião, a luta que Cristiano trava com ele próprio e, obviamente, as casas e os efeitos que ela vai provocando, é o que realmente importa.

Defenda esta ideia porque o protagonista tem de tomar uma decisão que não é nada fácil: Será que ele deve vender a sua derrota, mesmo que seja de forma convincente, como já fez antes, naquela que vai ser a última luta?

Além disso, recorrendo a vários flashbacks, narrados em capítulos curtos, Caê saltita entre passado e presente e inclui, diversas vezes, analogias entre o pugilismo e a escrita.

\”A escrita e o boxe me ensinaram a importância relativa de um individuo em detrimento da importância absoluta da verdade. Mas a lição não foi facilmente apreendida. Foi preciso escrever e apagar, escrever e apagar, até o ponto em que a escrita me fugiu. E foi preciso bater até criar calos nas mãos, e levar golpes até ficar com o rosto cortado, o nariz ligeiramente torto e a cicatriz escura entre o nariz e os lábios. Foi preciso renegar o que fazia, mergulhar de cabeça no que escolhi fazer e chegar ao ponto mais decadente para ter este satori, esta iluminação.\”
— Caê Guimarães

As personagens estão muito bem desenvolvidas com destaque para duas em especial, o sapateiro cego, um pouco ao estilo da abordagem escolhida por Saramago no seu romance \”Ensaio sobre a Cegueira\” e Esther, uma jornalista para quem, a partir de um certo ponto na narrativa, Amoroso começa a contar a sua história, depois de se terem conhecido, embalados pelo facto desta personagem feminina ter expressado a sua admiração pela meteórica carreira do ex-escritor. De certa forma, ela pode ser vista como uma espécie de salvadora do seu legado literário, uma decisão que vai contra o tipo de personagens femininas que geralmente são criadas para este tipo de romance. Aqui, neste ponto, há um mérito acrescido pata o autor que se afastou da escolha de a tornar num objeto sexual declarado.

Recomendo \”Encontro você no oitavo round\” a todos sem qualquer dúvida. Enquanto o lia, não foram poucas as vezes que imaginei os cenários onde tudo se desenrola, sabendo que Caê Guimarães, para além de escritor, é jornalista e roteirista. Será que a narrativa que tem Cristiano Machado Amoroso como protagonista vai chegar aos cinemas?

Foto: Caê Guimarães por Fabricio Zucoloto

Sobre o autor:
Nascido em 1970, no Rio de Janeiro, Caê Guimarães vive em Vitória, no estado do Espírito Santo. É escritor, poeta, jornalista e roteirista. Tem cinco livros publicados, entre poesia, conto e crónicas. “Encontro você no oitavo round”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020, na categoria de Romance, é o seu romance de estreia.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
\”Encontro você no oitavo round\”, de Caê Guimarães (Vencedor do Prémio Sesc de Literatura de 2020 na categoria de Romance, eBook, Editora Record, Wook):
https://www.wook.pt/ebook/encontro-voce-no-oitavo-round-cae-guimaraes/24394186

Leitores residentes no Brasil:
\”Encontro você no oitavo round\”, de Caê Guimarães (Vencedor do Prémio Sesc de Literatura de 2020 na categoria de Romance, Editora Record, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Encontro-voc%C3%AA-no-oitavo-round/dp/6555870877

Boas leituras!

1 thought on ““Encontro você no oitavo round”, de Caê Guimarães”

  1. Adorei essa postagem!
    Fiquei ainda mais interessada em ler. Gosto muito do estilo.
    Adorei suas considerações e as citações pelo meio do texto.

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