Romance que eu já tinha debaixo de olho, após ter conquistado o Prêmio Sesc de Literatura de 2020, \”Encontro você no oitavo round\” (ed. Editora Record), da autoria do carioca Caê Guimarães, mescla pugilismo, escrita, filosofia e vislumbres de uma realidade repleta de miséria humana.
Pessoalmente, eu não conheço muitas obras literárias que abordem o universo do boxe. Para ser sincero, neste momento, só me recordo de \”Clube da Luta\”, do escritor norte-americano Chuck Palahniuk.
Quando li, durante uma das minhas pesquisas de temas para os posts deste blog, no ano de 2020, que \”Encontro você no oitavo round\” tinha vencido a edição daquele ano do Prémio Sesc de Literatura, na categoria de Romance, fiquei curioso. Naturalmente, Sabemos que o mundo do boxe possui um ambiente violento e essa característica está bem presente em muitos trechos deste texto.
Ao longo das suas páginas, o leitor viaja pela vida de Cristiano Machado Amoroso, um boxeador profissional de 40 anos. Em tempos, no seu passado, ele chegou a ser escritor, ainda que, de certa forma, tenha tido uma reputação quase inexistente, apesar de ele ter escrito três livros de poesia e ter deixado um romance inacabado.
Todavia, a partir de um certo acontecimento, Amoroso começa a participar de lutas clandestinas quase sem regras, aceita dinheiro em troca de derrotas e outras práticas semelhantes.
Entretanto, há um momento marcante visto que, de cada vez que ele está prestes a subir ao tablado, surge um zumbido:
\”Há principalmente um zumbido que vai e vem. Começa grave, gordo e lento, mas à medida que o tempo avança se torna mais agudo e menos espaçado. Ele se instala no corredor do meu ouvido esquerdo. Caminha até o meio da cabeça e retorna. Fica então a sensação de que o bicho vai embora, mas que nada. Ele volta. Indesejado e paciente. Esparrama-se como quem chega por acaso. E em questão de horas toma conta de todas as minhas reações, provocadas no começo por uma batida distante e ritmada, que evolui para um estremecer pastoso, quase confortável. Acontece por alguns minutos, mas a essas passadas sobrevém o silêncio.\”
— Caê Guimarães
No ponto de partida escolhido por Caê, em termos temporais, nós, os leitores, encontramos o protagonista a poucas semanas do seu último combate, ou seja, está a caminhar a passos largos rumo ao fim da sua carreira de vários anos, durante a qual só foi nocauteado uma única vez.
Outro dos pontos fortes é que nesta narrativa que, em vários momentos é poética, existe, em paralelo, uma sincronização incrível entre o gingado do decadente protagonista Cristiano Machado Amoroso, devido à sua capacidade de observação, e uma escrita ágil, precisa, fluída e visceral tal como os movimentos que ele executa nas suas lutas. Tudo isto nos atinge das mais variadas formas em menos de 150 páginas. Ainda assim, engana-se quem pensar que este romance se esgota somente na temática do boxe.
Curiosamente, tal como aconteceu na minha leitura anterior, \”Diário de Inverno\”, de Paul Auster, volto a reencontrar a mesma ideia, desta vez, no que diz respeito à forma como Caê se refere às cicatrizes marcadas no corpo do boxeador: “toda cicatriz é um texto que conta uma história”.
A meu ver, a questão central desta história é muito mais profunda. Diria que o boxe funciona quase exclusivamente como algo que está à superfície. Na minha opinião, a luta que Cristiano trava com ele próprio e, obviamente, as casas e os efeitos que ela vai provocando, é o que realmente importa.
Defenda esta ideia porque o protagonista tem de tomar uma decisão que não é nada fácil: Será que ele deve vender a sua derrota, mesmo que seja de forma convincente, como já fez antes, naquela que vai ser a última luta?
Além disso, recorrendo a vários flashbacks, narrados em capítulos curtos, Caê saltita entre passado e presente e inclui, diversas vezes, analogias entre o pugilismo e a escrita.
\”A escrita e o boxe me ensinaram a importância relativa de um individuo em detrimento da importância absoluta da verdade. Mas a lição não foi facilmente apreendida. Foi preciso escrever e apagar, escrever e apagar, até o ponto em que a escrita me fugiu. E foi preciso bater até criar calos nas mãos, e levar golpes até ficar com o rosto cortado, o nariz ligeiramente torto e a cicatriz escura entre o nariz e os lábios. Foi preciso renegar o que fazia, mergulhar de cabeça no que escolhi fazer e chegar ao ponto mais decadente para ter este satori, esta iluminação.\”
— Caê Guimarães
As personagens estão muito bem desenvolvidas com destaque para duas em especial, o sapateiro cego, um pouco ao estilo da abordagem escolhida por Saramago no seu romance \”Ensaio sobre a Cegueira\” e Esther, uma jornalista para quem, a partir de um certo ponto na narrativa, Amoroso começa a contar a sua história, depois de se terem conhecido, embalados pelo facto desta personagem feminina ter expressado a sua admiração pela meteórica carreira do ex-escritor. De certa forma, ela pode ser vista como uma espécie de salvadora do seu legado literário, uma decisão que vai contra o tipo de personagens femininas que geralmente são criadas para este tipo de romance. Aqui, neste ponto, há um mérito acrescido pata o autor que se afastou da escolha de a tornar num objeto sexual declarado.
Recomendo \”Encontro você no oitavo round\” a todos sem qualquer dúvida. Enquanto o lia, não foram poucas as vezes que imaginei os cenários onde tudo se desenrola, sabendo que Caê Guimarães, para além de escritor, é jornalista e roteirista. Será que a narrativa que tem Cristiano Machado Amoroso como protagonista vai chegar aos cinemas?
Foto: Caê Guimarães por Fabricio Zucoloto
Sobre o autor:
Nascido em 1970, no Rio de Janeiro, Caê Guimarães vive em Vitória, no estado do Espírito Santo. É escritor, poeta, jornalista e roteirista. Tem cinco livros publicados, entre poesia, conto e crónicas. “Encontro você no oitavo round”, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura 2020, na categoria de Romance, é o seu romance de estreia.
Sugestão de Leitura:
Leitores residentes em Portugal:
\”Encontro você no oitavo round\”, de Caê Guimarães (Vencedor do Prémio Sesc de Literatura de 2020 na categoria de Romance, eBook, Editora Record, Wook):
https://www.wook.pt/ebook/encontro-voce-no-oitavo-round-cae-guimaraes/24394186
Leitores residentes no Brasil:
\”Encontro você no oitavo round\”, de Caê Guimarães (Vencedor do Prémio Sesc de Literatura de 2020 na categoria de Romance, Editora Record, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Encontro-voc%C3%AA-no-oitavo-round/dp/6555870877
Boas leituras!
Adorei essa postagem!
Fiquei ainda mais interessada em ler. Gosto muito do estilo.
Adorei suas considerações e as citações pelo meio do texto.