“Diário de inverno”, de Paul Auster

Ao contrário de tudo aquilo que este incrível autor tem habituado os seus leitores ao redor do mundo, desde a publicação da \”Trilogia de Nova Iorque\”, através dos seus romances, repletos de ficções inventivas e personagens inesquecíveis, e ainda assim, de forma magistral, as 192 páginas deste \”Diário de Inverno\” demonstram, sem quaisquer rodeios, tudo aquilo que ajudou a contruir o mundo interior de um dos maiores nomes da literatura americana contemporânea.

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\”Diário de inverno\”, de Paul Auster
(trad. Francisco Agarez, ed. Edições ASA, 192 páginas)

Publicado em Portugal pela Edições ASA, no ano de 2012, \”Diário de Inverno\”, a tradução da edição portuguesa ficou a cargo de Francisco Agarez. No Brasil, esta obra foi editada pela Companhia das Letras, em 2014, numa edição de 216 paginas com tradução de Paulo Henriques Britto.

É importante salientar que este “Diário de inverno” é a sua terceira incursão pela autobiografia, depois “A invenção da solidão”, que o apresentou ao mundo literário em 1982, e ainda “Da mão para a boca”, editado em 1997. Em comum, estes três livros partilham o tom nostálgico-melancólico e, principalmente, a adoção pelo autor de um ponto de vista de espectador da própria vida.

\”Pensas que nunca te vai acontecer, que não te pode acontecer, que és a única pessoa no mundo a quem essas coisas nunca irão acontecer, e depois, uma a uma, todas elas começam a acontecer-te, como acontecem a toda a gente.\”
— Paul Auster

É com a citação acima que Paul Auster, autor norte-americano multipremiado e dono de uma vasta produção literária, parte para nos levar numa viagem alucinante por vários dos momentos da sua vida e desvendar uma boa parte do mundo que o rodeia e que vai muito para além do seu trabalho como ficcionista de inquestionável qualidade.

Auster resolve narrar esses momentos em segunda pessoa. Se, por um lado, esta sua escolha confere à narrativa um estranho distanciamento emocional e uma impessoalidade, por outro, a linguagem direta é acessível não só aos seus leitores habituais, que já conhecem as marcas distintivas da sua ficção, como também àqueles que estão a estrear-se na leitura das suas obras, usando esta como porta de entrada.

A meu ver, este é um exercício de memória com um elevado nível de dificuldade, dado que Paul vai recordando, escrevendo e costurando momentos saltitados da sua vida, introduzindo cada um deles como flashbacks. Muitos desses recortes chegam, de certa forma, a roçar o fluxo de consciência, se o leitor se atentar ao tamanho da mancha textual, repleta de frases bastante extensas. separadas por vírgulas e com um tom de corrida contra o tempo. Afinal, se pararmos um pouco para refletir, não é a própria vida, desde o momento em que se inicia, um contra-relógio?

Nestas páginas, vive uma prosa poética, salpicada com momentos de amargura, dúvida, incerteza, medo, luta diária, fraqueza enquanto ser humano, intimidade familiar, felicidade, humor, só para citar alguns.

Num dos trechos que me marcou mais, Paul sublinha a importância das cicatrizes, mostrando que o nosso corpo é, sem qualquer dúvida, uma das testemunhas mais fiéis daquilo que vivemos:

\”A coleção de cicatrizes, em particular as da cara, que vês todas as manhãs quando te olhas ao espelho para fazer a barba ou pentear o cabelo. Raramente pensas nelas, mas, quando pensas, compreendes que são marcos de vida, que as várias linhas dentadas que te recortam a pele da cara são letras do alfabeto secreto que conta a história de quem és, porque cada cicatriz é o vestígio de uma ferida sarada, e cada ferida foi causada por uma colisão inesperada com o mundo – ou seja, um acidente, ou uma coisa que não tinha de ter acontecido, já que um acidente é por definição uma coisa que não tem de acontecer. Factos contingentes por oposição a factos necessários, e a consciência que tens, quando esta manhã olhas para o espelho, de que toda a vida é contingente, à exceção do único facto necessário de que, mais cedo ou mais tarde, chegará ao fim.\”
— Paul Auster

Existem lembranças afetivas de períodos variados, em que a sua mãe, que faleceu em 2002, ainda que seja descrita como uma mulher resignada a um casamento com um homem distante e devotada à criação dos filhos, acaba por assumir um papel de protagonismo. 

Mais à frente, na visão do autor, o papel vital do corpo na nossa existência volta estar em destaque. Assim sendo, não é de estranhar que a mudança, que é algo tão difícil de lidar e de aceitar para muitos de nós, possa ter um impacto bastante forte sobre ele:

\”A perspetiva de te desenraizares tinha – te mergulhado num estado de ansiedade extrema. (…) Sempre que chegas a uma bifurcação na estrada, o teu corpo claudica, porque o teu corpo sempre soube o que a tua mente não sabe e, seja qual for a forma que escolhe para claudicar, mononucleose, gastrite ou ataques de pânico, o teu corpo sempre suportou o fardo dos teus medos e das tuas batalhas interiores, encaixando os golpes a que a tua mente não pode, ou
não quer, fazer frente.\”
— Paul Auster

A certa altura, o texto adota um tom confessional, nomeadamente, quando Auster fala do período em que residiu em Paris com o sonho de se tornar um poeta, realçando os seus trabalhos como tradutor por conta própria, a sua ligação à poesia daquele país, focando-se naquela que surgiu no século XX, A nível pessoal, não deixou de relatar suas aventuras (e desventuras) sexuais nessa cidade tão ligada às artes.

Deixo-vos também este trecho em que vemos uma relação entre a condição humana, o sofrimento e o ato da escrita:

\”Não há dúvida de que és uma pessoa imperfeita e sofredora, um homem que desde sempre transporta consigo uma chaga (se assim não fosse, por que razão terias passado toda a tua vida adulta a verter palavras de sangue para uma página?)\”
— Paul Auster

Um outro traço impressionante é quando o autor decide enumerar as moradas de muitos os lugares já onde viveu. Aquilo que, para muitos leitores, pode ser visto como algo desinteressante e maçador, a inteligência, a mestria e as mãos do autor transformam essa parte do texto em algo interessante e que não faz com que o leitor pare de ler.

A referência ao Inverno, no título, conduz-nos à derradeira estação da vida: Auster lançou o livro aos 64 anos, idade que apresenta como o início da velhice e do declínio inexorável rumo ao fim.

Em suma, esta obra cobre cada um de nós, enquanto leitores, com uma manta costurada com aquilo que há de mais profundo na condição humana, a família, o tempo, a memória, a escrita e, de forma inevitável, a morte. Um livro que recomendo sem qualquer margem para dúvida.

Foto: Paul Auster por Tim Knox

Sobre o autor:
Nascido em 1947 em Newark, Nova Jersey, Estados Unidos, Paul Auster estudou literatura francesa, inglesa e italiana na Columbia University, em Nova Iorque. Viveu em Paris de 1971 a 1975. De volta à cidade que nunca dorme, em 1980, mudou-se para o bairro do Brooklyn, onde vive e trabalha até hoje. Poeta, tradutor, crítico de cinema e literatura, romancista e guionista de cinema, publicou ensaios, memórias, poesia e ficção. Da sua vasta e multifacetada produção literária destacam-se “A trilogia de Nova Iorque”, “Mr. Vertigo”, “A noite do oráculo”, “No país das últimas coisas”, “Timbuktu”, “Leviathan”, “Sunset Park”, \”4321\”, \”Um homem em chamas\” e \”Baumgartner\” para citar apenas alguns exemplos.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Diário de inverno”, de Paul Auster (Edições ASA, Wook):
https://www.wook.pt/livro/diario-de-inverno-paul-auster/13927538

Leitores residentes no Brasil:
“Diário de inverno”, de Paul Auster (Companhia das Letras, Amazon Brasil):
https://www.amazon.com.br/Di%C3%A1rio-inverno-Paul-Auster/dp/853592471X

Boas leituras!

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