Desconstruindo Saramago, com Ana Ribeiro: #4 – “A Caverna”

Para começar o ano de 2021, com chave de ouro, Ana Catarina Ribeiro abre a rubrica \”Desconstruindo Saramago\” com a sua opinião sobre \”A Caverna\”, um romance editado no ano de 2000, ou seja, foi o primeiro livro escrito por José Saramago após ter recebido o Prémio Nobel de Literatura, em 1998. Obviamente, a sua publicação era esperada com bastante espetativa, visto que todos queriam saber se Saramago iria acomodar-se ao prestígio do Nobel ou se, pelo contrário, continuaria a surpreender. A minha opinião é que, mais uma vez, o mestre surpreendeu e criou uma obra prima na qual, de forma bela e subtil, colocou o dedo na ferida da nossa sociedade capitalista. 

“Vivi, olhei, li, senti, Que faz aí o ler, Lendo, fica-se a saber quase tudo, Eu também leio, Algo portanto saberás, Agora já não estou tão certa, Terás então de ler doutra maneira, Como, Não serve a mesma para todos, cada um inventa a sua, a que lhe for própria, há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar à outra margem, a outra margem é que importa.” — José Saramago

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Fonte: Porto Editora

Esta é a história de uma família constituída por Cipriano Algor, pela sua filha Marta e pelo seu genro Marçal Gacho. A vida desta família está ligada ao centro, uma estrutura gigantesca, que detém o monopólio da economia e, consequentemente, das vidas. Cipriano Algor é oleiro e vende as suas louças de cerâmica ao centro, até ao dia em que é informado que os clientes passaram a preferir o plástico á cerâmica. Enquanto o seu ofício se torna inútil, assiste a um mundo em que as estufas substituíram os campos, as casas térreas deram lugar a prédios onde nem a janela se pode abrir por causa do ar condicionado. O produto do trabalho foi separado de quem o fez e passou a ser apenas um número. Paralelamente a esta análise profunda da atualidade, o velho oleiro, com a ajuda da filha, atreve-se a reinventar a arte de moldar o barro, de maneira a corresponder ás exigências do mercado. Decidem fabricar bonecos de barro temáticos Se tudo correr bem, talvez possa acalentar o sonho de continuar na sua casinha, vivendo do trabalho das suas mãos. Quem sabe até poderá voltar a casar com a Isaura Estudiosa.

Paralelamente a tudo isto, Marçal Gacho espera uma promoção no seu cargo de vigilante do centro, que abrirá a esta família a porta de uma daquelas casas sem janela e descobre que vai ser pai. Seja qual for o resultado da empreitada da olaria Algor, o destino está marcado. Ou será que não?

 No meio de tudo isto, aparece um cão a quem dão o nome de achado. Saramago coloca várias vezes a narrativa sob a perspetiva deste amigo de quatro patas. Achado representa um entendimento, que tal como o entendimento humano, é limitado. Estamos restritos ao que nos chega através dos cinco sentidos. Seremos mais inteligentes que os animais, ou serão eles, na sua simplicidade, mais inteligentes que nós? O que conhecemos do mundo senão sombras, á imagem da alegoria da caverna de Platão. Quem é este Deus a quem oramos, que abandona as suas criaturas á própria sorte.

\”Que estranha cena descreves e que estranhos prisioneiros, São iguais a nós.\” — Platão, República, Livro Vll

Como já devem ter percebido, este livro traça uma analogia com a caverna de Platão. Fiquei encantada com a associação do forno da olaria à dita caverna. Em frente ao forno, o banquinho das meditações onde Cipriano recorda, sonha e se frusta. Um outro paralelo é marcado entre a profissão de oleiro e Deus. Afinal de contas, o Deus bíblico é descrito como o primeiro e soberano oleiro, que após nos bafejar com o sopro da vida, nos larga num mundo de sensações, presos a sombras.

Cipriano Algor, Marçal Gacho e Marta são como uma trindade terrestre. Ajudam-se mutuamente sob o testemunho distante do cão achado, escravo da sua condição animal e da amoreira preta do quintal, símbolo imutável da indiferença da natureza perante a mudança dos tempos e das vontades humanas.

Não me quero alongar muito mais, porque sinto que posso estragar a vossa experiência de leitura. Apenas vos posso adiantar que a ligação á caverna de Platão não se ficará por aqui. Os últimos capítulos são uma avalanche de emoções. Para terem uma ideia, senti falta de ar, angústia, medo, paixão, alegria, orgulho Enfim, esta obra de Saramago destronou, no meu coração, o “Memorial do Convento” e mal posso esperar por ler mais livros do mestre.

Foto: José Saramago; Fonte: Wikimedia Commons

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Sobre o autor:
Nasceu. a 16 de Novembro de 1922. na aldeia de Azinhaga. Devido a dificuldades económicas, José Saramago foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo, a partir desse momento, exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. O seu primeiro livro foi publicado em 1947. No entanto, só em 1976, é que passou a viver, exclusivamente, da literatura, primeiramente, como tradutor, depois, como autor. Romancista, dramaturgo, cronista e poeta, em 1998, tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prémio Nobel de Literatura.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“A Caverna”, de José Saramago (Porto Editora, Wook):
https://www.wook.pt/livro/a-caverna-jose-saramago/15612444

Leitores residentes no Brasil:
“A Caverna”, de José Saramago (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/a-caverna-2-ed-2020/artigo/bcc6db27-e870-4db9-9112-6e0fb8c01915

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Boas leituras!

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