E se escrevessem uma história sobre uma ama que apesar de cuidar bem das crianças, acaba por matá-las? Essa é a premissa da aclamada narrativa com que Leïla Slimani venceu o Prix Goncourt, em 2016, o mais célebre dos prémios literários franceses. Numa entrevista ao Estadão, a autora falou da trágica história que originou o livro.
A jornalista e escritora franco-marroquina, Leïla Slimani, é mais uma das confirmações para a edição da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, na cidade de Paraty, no Rio de Janeiro. “Chanson Douce”, o seu premiado romance que, em terras de Vera Cruz, está traduzido como “Canção de Ninar”, ainda é uma criança nas prateleiras das livrarias brasileiras, dado que chegou, praticamente, há um mês, tendo sido editado pela Tusquets Editores, uma editora da Planeta de Livros Brasil.
É de salientar que Slimani começou o enredo, colocando o leitor, directamente, no final do mesmo. Esta técnica exige, da parte de quem escreve, um enorme domínio da escrita e das formas que pode usar, afim de manter a atenção e o interesse do leitor até à última página.
A título de exemplo, cito duas obras em que os seus autores recorreram, igualmente, a esta forma de narrar:
– “Crónica de uma Morte Anunciada”, de Gabriel García Márquez – Publicada, curiosamente, no mesmo ano em que Leïla nasce e um ano e, somente, um ano antes de vencer o Nobel de Literatura, principalmente, pela autoria de “Cem Anos de Solidão”, o ícone do realismo mágico na América Latina, fez jus ao título desta novela que narra os derradeiros momentos de Santiago Nasar, Gabo anuncia, literalmente, no primeiro par de linhas, a aproximação do fim trágico do protagonista:
«No dia em que iam matá-lo, Santiago Nasar levantou-se às 5:30 da manhã para esperar o barco em que chegava o bispo.»
– “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoievski – Publicado, primeiramente, em capítulos, no Mensageiro Russo, em 1866, este intenso romance explora, de forma brilhante, o lado psicológico do ser humano, o que se tornou, ao longo dos anos, na principal característica que percorre toda a produção literário deste magistral autor do país dos Czares. Fiódor informa o leitor, de forma clara e directa, qual será o assunto tratado nesta narrativa, logo no título. Ao lermos as primeiras páginas, cedo, percebemos que Raskólnikov, o protagonista e ex-estudante de Direito, será o criminoso. Das muitas frases de altíssima qualidade, presentes em todo este romance, deixo-vos uma que me tocou, particularmente:
«O criminoso, no momento em que pratica o seu crime, é sempre um doente.»
No caso de “Canção de Ninar”, ficamos a saber, logo, à partida, que a ama, enquanto protagonista, assassinou duas das crianças que, amavelmente, cuidava. Se, porventura, é um leitor que detesta spoilers, saiba que esta revelação não revela nada que já não tenha sido dito numa das abas do livro. É, justamente, a partir deste ponto que ela nos propõe uma viagem, através das palavras a uma realidade, demasiadas vezes, dura.
Ao Estadão, a autora contou que sempre quis escrever sobre as amas, uma vez que, na sua opinião, são personagens muito interessantes e possibilitam, ao mesmo tempo, uma exploração profunda e maior das relações que estabelecem com todas as classes sociais.
No entanto, durante um tempo, ainda no processo de escrita, as palavras não saíram, tal como quis, e o manuscrito adquiriu um tom tedioso e maçador. Mais tarde, a inspiração emanou dos jornais, trazendo, consigo, um carácter bestial, crú e fatal e, assim, um novo final surgiu.
A própria autora vivenciou, em criança, a experiência de ser criada por uma ama, em casa, e, hoje, delega os seus filhos a uma profissional, não quis acreditar quando tomou conhecimento do caso que envolveu a dominicana Yoselyn Ortega. Os factos remontam a 2012 e, actualmente, está acusada de ter morto duas crianças, Leo tinha 2 anos e Lucia, 6, enquanto cuidava delas, na cidade que nunca dorme. Apesar de ter tentado o suicídio, momentos após o sucedido, Yoselyn sobreviveu e, dentro de semanas, deve conhecer a sentença, sendo que a pena poderá ser cumprida num hospital pediátrico.
Voltando ao processo de construção da história que, agora, está disponível nas livrarias portuguesas e brasileiras, Slimani confessa que uma das suas principais dificuldades foi afastar-se daquilo que, normalmente, é óbvio:
«O mais difícil foi evitar o clichê do personagem, da sua loucura. Odeio filmes e romances que mostram a loucura de forma caricatural. Todas as vezes em que ela fingia ser perfeita, eu queria que as pessoas se questionassem: ela é louca? Há algo errado? Eu sempre quis que houvesse a dúvida», relata a autora.
Ainda que a autora realce que não leu mais do que um único parágrafo, deixa escapar que as suas crianças ficcionais, Adam e Mila, bebem da fonte que, neste caso, é a mencionada tragédia americana.
Fazendo um parêntesis, a sua estreia na literatura aconteceu há, aproximadamente, 4 anos, com a publicação de “Le Jardin de l’Ogre”, um livro que, à semelhança deste, deve chegar, também, às livrarias do país, contudo, nesta entrevista, não foi revelada qualquer data.
Inesperadamente, a autora franco-marroquina declarou, sem enumerar livros específicos, que já leu Jorge Amado e define Clarice Lispector como “melancólica, inquieta, uma alma frágil”.
Quanto ao “Canção de Ninar”, já foi traduzido em 36 países, tantos quanto os anos que a autora tem, o que lhe deu, sem dúvida, toda uma nova dimensão. Em termos de vendas, a distinção com o prestigiado Prémio Goncourt, rendeu-lhe, já, mais de 600 mil exemplares vendidos e sabe-se, inclusivé, que vai se adaptado para uma longa-metragem.
Em Portugal, este título chegou, em Abril de 2017, através da Alfaguara Portugal, uma chancela pertencente ao Grupo Editorial Penguin Random House, sob o título de “Canção Doce”.
Boas leituras!