“Cai a noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo

Apreciadora da obra de Saramago, sobretudo, pela ansiedade gigante que teve ao ler “Ensaio sobre a Cegueira”, “Cai a Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo, é, acima de tudo, uma alegoria de toda um país que, aos poucos, está a morrer, infestado pela fome, pela violência, pelo totalitarismo que atravessa, sem qualquer piedade, aquela cidade. Contudo, na minha opinião, esta é uma história universal sobre capacidade que, nós, os humanos, temos de sobreviver às adversidades. Definitivamente, um dos meus livros favoritos deste ano!

Através de Adelaida Falcón, a jornalista e escritora venezuelana, coloca-nos perante uma realidade que, quase todos os dias, nos chega pela televisão: a áspera e inflexível ditadura que se vive por toda a Venezuela, nos dias que correm. No entanto, a cidade de Caracas é, somente, o ponto de partida para algo que se torna muito maior e derruba toda e qualquer barreira.

Ao mergulhar neste retrato, somos empurrados, abruptamente, para um momento de tensão, logo na primeira página. A nossa protagonista que, curiosamente possui o mesmo nome que a mãe, acaba de a enterrar:

“Enterrámos a minha mãe com as suas coisas: o vestido azul, os sapatos pretos sem cunha e os óculos bifocais. Não podíamos despedir-nos de outra maneira. Não podíamos separar aqueles artigos dos seus seus gestos. Teria sido como devolvê-la incompleta à terra. Sepultámos tudo, porque depois da sua morte já nada nos restava. Nem sequer nos tínhamos uma à outra.” — Karina Sainz Borgo

Naturalmente, dá-se conta da alteração drástica que esta perda vai ter na sua vida:

“Enquanto redigia para o seu túmulo, percebi que a primeira morte acontece na linguagem, nesse acto de arrancar os sujeitos do presente para os fixar no passado. Transformá-los em acções acabadas. Coisas que começaram e terminaram num tempo extinto. Aquilo que foi e não voltará a ser. A verdade era essa: a minha mãe já só existiria conjugada de outra forma.” — Karina Sainz Borgo

Dessa forma. a autora dá início ao cortejo de alegorias e metáforas que vai estar presente em toda a narrativa.

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Fonte: Alfaguara Portugal

Em momento algum, ficamos a saber, de forma exacta, quando é que tudo isto acontece. Sabemos, apenas, que ainda se situa na época em que Hugo Chávez liderou os destinos do povo venezuelano, embora o seu nome não tenha sido referido, de forma explícita.
Depois do funeral, aos poucos, vamos sabendo pormenores sobre a vida da família Falcón e, principalmente, da força das mulheres que, segundo Adelaida, “reinavam até à beira do túmulo, como quem morre ao pé de um vulcão”.

A certa altura, temos um flashback onde, num piscar de olhos, entrevemos um pouco da sua infância, nomeadamente, quando ela afirma que se, por um lado, cresceu “rodeada de filhas de imigrantes. Miúdas de pele trigueira e olhos claros”, por outro, revela-nos, num tom de desabafo, que naquele país em que toda a gente era feita de outra pessoa, nós não tínhamos ninguém. Aquela terra era a nossa única biografia.”.

Entretanto, assistimos à degradação do ambiente que se vive na cidade e à forma como os imigrantes, que nos anos 40, ajudaram a construir um país que aspirava alcançar a modernidade, são expelidos, justamente, por quem lhe tinha dado abrigo, há décadas atrás.

No meio de todo este caos, passaram-se alguns dias até que Adelaida começasse a viver o seu próprio “inferno”. A invasão domiciliar, arquitetada pela Marechala, a figura que Karina Sainz Borgo utilizou como “alegoria do poder excessivo”, juntamente, com as suas seguidoras, tornou-se no momento perfeito para que o caminho rumo ao envelhecimento vertiginoso daquela que se viu praticamente sozinha, aos 38 anos de idade.
Porque, naturalmente, para sobreviver, por vezes, temos de deixar de ser quem somos.

Ainda que esta tenha sido a minha primeira vez a ler um romance da autora, uma vez que este é o seu livro de estreia, a sua escrita, que está repleta de detalhes e, simultaneamente, é directa ao ponto, fez com que ficasse agarrado ao enredo magistralmente tecido.

Por fim, não posso deixar de salientar que este é, sem dúvida, muito mais que um grito de um povo, através da consciência que Adelaida Falcón nos narra. Estamos perante o clamor por uma identidade, há muito perdida, que se construiu com um mosaico diversificado de gentes que, em último caso, se vêem obrigadas a transfigurar-se para não perderem o seu fôlego.

Para quem segue a página, no Brasil, relembro que a autora estará presente na edição de 2019 da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty, que decorre no Rio de Janeiro, entre os dias 10 e 14 de Julho.

Aproveito a oportunidade para reforçar que leiam a primeira parte da entrevista que fiz com a autora, em Lisboa, no passado dia 17 de Junho:
https://sonhandoentrelinhas.pt/blog/entrevista-com-karina-sainz-borgo-autora-de-cai-a-noite-em-caracas-parte-1/

Foto: Karina Sainz Borgo por Michael Schick

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https://www.wook.pt/?a_aid=595f789373c37

Sobre a autora:
Nascida em Caracas, no ano de 1982, Karina Sainz Borgo é escritora e jornalista cultural. A autora, que vive em Espanha, há mais de uma década, iniciou a sua carreira no jornal venezuelano El Nacional. Actualmente, colabora com publicações como El MundoFolha de S.Paulo e o digital Vozpópuli. É autora dos livros de crónicas “Tráfico Guaire” e “Caracas hip-hop”, ambos de 2008. “Cai a Noite em Caracas” é o livro que marca sua estreia na ficção, tornou-se num bestseller imediato em terras espanholas, dado que contou com cinco edições num único mês e teve os seus direitos vendidos para 22 países.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Cai a Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Alfaguara Portugal, Wook):
https://www.wook.pt/…/cai-a-noite-em-caracas-karin…/23130757

Leitores residentes no Brasil:
“Noite em Caracas”, de Karina Sainz Borgo (Editora Intrínseca, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/…/457da803-b0af-4796-873e-11263…

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Boas leituras!

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