Entrevista com Itamar Vieira Junior, autor de \”Torto Arado\”

Fora do eixo de Rio de Janeiro e São Paulo, Itamar Vieira Junior venceu, recentemente, o Prémio LeYa, o maior prémio de literatura em língua portuguesa para obras inéditas. Nascido em Salvador, o autor foi distinguido pela “solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, na sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade rural patriarcal.” “Torto Arado” será publicado no primeiro trimestre de 2019. Conheça melhor o autor através da entrevista que, gentilmente, nos concedeu.

SEL – Como se tornou leitor?
Itamar Vieira Junior
Creio que foi ao mesmo tempo em que aprendi a escrever. Foi um ato contínuo. Nunca mais parei. Eu passava férias na casa dos meus avós, e o meu avô chegava do trabalho com histórias em banda desenhada. Comecei, então, a escrever histórias para os meus colegas de classe, na escola, interpretarem. A dramaturgia, eu nem imaginava o que era. No entanto, foi a minha primeira experiência de escrita.

Os meus irmãos gostam de ler. Em algum momento, eles foram estimulados por mim, que sou o mais velho. Venho de uma família muito humilde, a leitura não era considerada importante. Inclusive alertavam-me de que eu poderia enlouquecer por não parar de ler. Apontavam para uma casa, do outro lado da rua, onde vivia um homem que, diziam, ficou «louco de tanto estudar». Os meus pais, avós, tios e tias não liam porque havia trabalhos e coisas mais urgentes do que ler. Era preciso colocar comida na mesa. Mas acredito que a literatura não se resume à escrita, ela vai muito além. Somos uma família falante, gente que fala alto, grita, passa do riso ao choro num átimo.
A oralidade, as narrativas misteriosas, as repetições do falar,
tudo isso aparece com frequência no que escrevo
e influenciou-me definitivamente.
— Itamar Vieira Junior

SEL – Você se lembra de qual foi o primeiro livro que leu na íntegra?
Itamar Vieira Junior –
Não me lembro. Mas lembro-me do livro que li e que fez com que dissesse para mim mesmo: “quero ser escritor”. Foi “O caso da borboleta Atíria”, de Lúcia Machado de Almeida. Fui arrebatado pela história de mistério que equilibrava biologia e uma narrativa única.

SEL – Quando é que percebeu que o seu gosto pela leitura era algo sério?
Itamar Vieira Junior –
Quando percebi que não conseguia ficar um dia sem ler. A minha mãe tinha uma “Enciclopédia do Estudante” e eu li todos os volumes e verbetes. Eu estudava numa escola precária, que não tinha biblioteca. Eu tinha um amigo que estudava numa boa escola e fazia empréstimos diários para que eu pudesse ler. Lia obras infantis e juvenis e, até mesmo, clássicos da literatura, num dia, devolvia, e ele trazia um livro novo. Depois, passei, eu mesmo, a ir sozinho às bibliotecas públicas para fazer empréstimos de livros. Nunca mais parei.

Leio todos os géneros: do conto à poesia, passando pelo romance, histórias policiais e teatro. Autores? São tantos que não caberiam aqui, mas falarei dos escritores portugueses: José Saramago, Maria Teresa Horta, Eça de Queirós, Teolinda Gersão, Inês Pedrosa, José Luís Peixoto e Valter Hugo Mãe são alguns dos que me acompanham.
— Itamar Vieira Junior

SEL – Na sua experiência de leitura, já houve algum autor que não conhecia e a arrebatou completamente?
Itamar Vieira Junior –
Sim. Marilynne Robinson foi uma autora que me arrebatou por completo. Ela tem uma obra pequena – quatro livros de ficção publicados em quase quatro décadas de carreira -, mas de profunda humanidade. Recomendo sempre.

SEL – Quando está a ler um livro, qual é a característica que faz com que não largue a história?
Itamar Vieira Junior –
A boa narrativa. A maneira de se narrar uma história é o que me fisga. Pode ser uma história banal mas, se for bem contada, arrebata-me.

SEL – Como marca as citações que mais gosta num livro? Com tirinhas, sublinha a lápis ou anota num caderno?
Itamar Vieira Junior –
Anoto em cadernos. Tenho pavor de livros riscados e sublinhados. Para mim, o livro é um objeto quase sagrado.

SEL – Ao se tornar escritor, o que mudou na sua visão sobre o mercado editorial?
Itamar Vieira Junior –
Pouca coisa. Não tinha muita noção do que era o mercado editorial. Estou me inteirando agora.

Gosto muito de ler antes de escrever. Ler, inspira-me. Às vezes, quando encontro algum entrave para prosseguir uma história,
abro um livro e tudo se ilumina.

— Itamar Vieira Junior

SEL – Em que momento você decide qual vai ser o título do seu novo livro? Antes de escrever, durante a escrita ou apenas com o manuscrito pronto?
Itamar Vieira Junior –
Durante a escrita. No caso de “Torto Arado”, carreguei o título por muitos anos, assim como a história. Mas decido, ao longo da escrita, um título que possa traduzir a alma do que me proponho a narrar.

SEL – Como surgem, normalmente, as ideias para as suas histórias?
Itamar Vieira Junior –
Da vida. A minha fonte de inspiração é a vida dos outros. A minha não me interessa. Seria incapaz de fazer autoficção.

SEL – As suas origens têm ou tiveram alguma influência em alguma das suas obras?
Itamar Vieira Junior –
Sim. Tudo aquilo que escrevo passa pelas minhas vivências, as minhas origens, a minha terra, os dilemas do meu entorno.

SEL – Como você organiza as ideias no papel? Numa primeira fase, escreve um resumo base da história, faz esquemas, constrói uma linha temporal?
Itamar Vieira Junior –
Organizo a estrutura, personagens e ações em fragmentos, anotações difusas que só eu consigo compreender. Nem sempre começo a história do início, mas só dou conta disso durante o avançar do trabalho. Às vezes, aquela narrativa que seria o começo, acomoda-se bem no meio do texto. Quando isso acontece, escrevo um outro início. Não sigo uma linha temporal, nem um resumo da história.

SEL – E quando chega a fase de criar as personagens, inspira-se em alguma pessoa real ou simplesmente inventa? Costuma ler biografias durante esse processo?
Itamar Vieira Junior –
Inspiro-me em pessoas reais, mas não faço um relato biográfico. Posso juntar inúmeras características de pessoas distintas num único personagem, ou posso dividir uma personalidade em duas. Leio biografias, mas não necessariamente para o meu processo de escrita.

Para mim, durante o processo criativo, o mais difícil é manter-me disciplinado e escrever, todos os dias, até concluir o trabalho, diante das inúmeras demandas da vida.
— Itamar Vieira Junior

SEL – Como é que lida com o bloqueio criativo?
Itamar Vieira Junior –
Trabalho dobrado. Não creio em bloqueio criativo. Escrevemos quando temos algo a dizer.

SEL – Qual é a fase do processo de lançamento que mais te empolga?
Itamar Vieira Junior –
É ver que o texto ganha vida própria e deixa de ser seu. Vira um objeto, ganha vida, capa, cores, caminha sem você. Caminha só pelo interesse dos leitores.

SEL – “Torto Arado” é o seu primeiro romance, contudo, começou a sua produção literária a escrever contos. Para você, qual é a maior diferença entre estes dois tipos de narrativa?
Itamar Vieira Junior –
O conto e o romance são, de facto, distintos. O conto tem uma estrutura mais semelhante ao poema. É uma narrativa curta que guarda um desenlace único, muitas vezes, abrupto. Mas já li críticas sobre os meus contos que diziam que tinham “densidade romanesca”. Talvez seja a vontade de condensar um universo complexo nas poucas páginas que formam um conto.

SEL – Curiosamente, o seu segundo conto, “A oração do carrasco”, publicado em 2017, está nomeado para o Prémio Jabuti, na categoria de contos. Sente que o seu trabalho está a ser reconhecido?
Itamar Vieira Junior –
Sim. Há um reconhecimento na medida em que outros prémios lhe foram igualmente concedidos, ou seja, passaram pela avaliação de jurados. Além de ser finalista do Prêmio Jabuti, o livro ganhou o Prêmio Humberto de Campos, biênio 2016 – 2017, da União Brasileira de Escritores (Secção Rio), e o segundo lugar no Prêmio Bunkyo de Literatura 2018, concedido pela Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa e de Assistência Social. São jurados diferentes, que não me conheciam, mas distinguiram o livro pelo mérito.

Quando recebi a notícia, foi difícil de acreditar pela concorrência e qualidade dos manuscritos que são submetidos. Recebi um telefonema do poeta Manuel Alegre, enquanto me dirigia para o hospital para cuidar do meu pai. Sim, era o original que havia submetido. Com o título de ‘Torto Arado’, não havia outro.
Passei quase dois dias sem dormir, a pensar no peso que
o prémio traria para o meu trabalho.

— Itamar Vieira Junior

SEL – O que é que os leitores portugueses podem esperar de “Torto Arado”?
Itamar Vieira Junior –
Diria que mergulharão numa história sobre o Brasil profundo e que diz muito sobre as nossas mazelas sociais. Uma história sobre a luta pela terra, com os contornos universais e únicos da experiência humana.

SEL – O que pensa sobre a existência deste tipo de prémios para a divulgação da língua portuguesa?
Itamar Vieira Junior –
São fundamentais. Os prêmios trouxeram-me até ao Prémio LeYa. O meu primeiro livro de contos, “Dias”, foi publicado graças ao Prêmio de Arte e Cultura do Banco Capital que, durante muito tempo, foi um importante prêmio a lançar novos autores baianos. Depois, submeti o original de “A oração do carrasco” para concorrer a um edital público setorial de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia. Foi assim que consegui a edição e figurar nos prémios que já citei. Dificilmente encontraria as casas editoriais abertas para publicar um desconhecido.

SEL – Infelizmente, nós, os portugueses, temos poucos autores brasileiros a chegar aqui, fora do eixo do Rio de Janeiro e São Paulo. Poderia indicar um bom autor que retrate o Brasil rural, para além de Raduan Nassar?
Itamar Vieira Junior –
Guimarães Rosa, um clássico universal. A sua obra-prima, “Grande Sertão: Veredas”, é um monumento à literatura em língua portuguesa. Há, também, as obras de Jorge Amado que se passam no universo rural, Ariano Suassuna, Raquel de Queirós e José Lins do Rêgo.

Leiam muito. Sobretudo, leiam. Só a partir da leitura, da apreensão da estética de muitas narrativas, é que vocês encontrarão um caminho para narrar a sua história. E criem a rotina, a disciplina para escrever. Só com a rotina é que vocês poderão concluir um projeto de escrita.
— Itamar Vieira Junior

SEL – O que gostaria de ter sabido antes de ter começado a sua carreira?
Itamar Vieira Junior –
Que a pressa não é uma virtude. E que precisamos de amadurecer para escrever uma obra.

SEL – Como classifica o momento atual da literatura brasileira?
Itamar Vieira Junior –
A literatura brasileira fervilha com autores já consagrados e outros que surgem, a cada ano, dando um novo fôlego à nossa literatura.

Foto: Itamar Vieira Junior/Divulgação

Sobre o autor:
Nascido em Salvador, na Bahia, Itamar Vieira Junior é geógrafo e doutor em Estudos Étnicos e Africanos. Com “A oração do carrasco”, um livro editado em 2017 pela Editora Mondrongo, foi finalista do Prêmio Jabuti na categoria de contos. O seu romance “Torto Arado”, aclamado pela crítica e pelo público, venceu o Prémio LeYa em 2018.

Boas leituras!

Leave a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Scroll to Top