“Beloved”, de Toni Morrison

Neste meu novo texto de opinião, venho falar-vos de \”Beloved\”, de Toni Morrison. Um livro que aborda o tema da escravatura. Um tema que marca uma página negra na história da humanidade e que continua a fazer parte da nossa atualidade. Basta vermos as notícias, confrontarmo-nos com os nossos próprios preconceitos e admitir que, num contexto histórico mais alargado, a abolição não aconteceu assim há tanto tempo. As feridas que julgamos estarem já cicatrizadas, ainda possuem crostas e estas são beliscadas, diariamente, ao redor do mundo.

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Fonte: Editorial Presença

A narrativa de \” Beloved \” começa em 1873, dez anos após a abolição da escravatura nos EUA, numa altura em que a população negra se estava a reintegrar na sociedade, num contexto de liberdade e, ao mesmo tempo, continuava a sofrer todo o tipo de violência, racismo e segregação social. Para além de todos estes estigmas, ainda tinham que sarar as mazelas e enfrentar os fantasmas causados por uma vida de servidão.

É neste panorama que vamos conhecer Sethe, uma ex-escrava, que vive com a filha Denver, numa casa conhecida como 124, em Cincinatti, Ohio. O 124 é assombrado pelo fantasma de uma das filhas de Sethe, que morreu em bebé. A forma violenta como este fantasma se manifesta, na casa, confere-lhe caraterísticas humanas, quase como se o 124 fosse uma personagem.

Através de flashbacks, que nos transportam 18 anos no tempo, vamos conhecer a história de Sethe. Sethe, grávida de Denver, foge da casa onde vivia como escrava, no Kentucky, até à casa da sogra, em Cincinnati, Ohio. Numa primeira tentativa de fuga, apenas consegue enviar os três filhos, ficando a mercê da fúria dos seus donos que, entretanto, descobrem tudo. A escrava é brutalmente espancada e fica muito debilitada fisicamente, praticamente impossibilitada de fugir, mas mesmo assim decide libertar-se. Arrastando-se pelos caminhos e contando com a ajuda inesperada de uma mulher branca, ela consegue chegar à margem do rio Ohio, onde acaba por dar à luz. A travessia do rio Ohio apresenta-nos um percurso real, utilizado no passado para fugas de escravos que almejavam chegar ao estado mais abolicionista dos EUA. Sethe consegue chegar à casa da sogra mas, passado algum tempo, é localizada pelos seus donos. Ao avista-los a aproximarem-se da casa, para reaverem o que lhes pertence, ela agarra nos filhos e leva-os para um barracão nas imediações da casa, onde mata a sua filha de dois anos. A sua ideia é mata-los a todos. No entanto, é impedida a tempo. O que leva a escrava fugitiva a matar a própria filha? A verdade é que ela prefere ver os filhos mortos, a terem um destino de servidão igual ao seu. Para nós, pode parecer estranho, mas o infanticídio era muito comum na escravidão e esta história foi baseada num facto verídico, ocorrido no Kentucky, em 1856.

18 anos depois, a sogra de Sethe já morreu e os seus dois filhos, homens, fugiram de casa. Sobraram Sethe e Denver, num ambiente de paz. armada com o fantasma, pontuado por estremecimentos violentos da casa, aos quais já estão habituadas. Até que um dia, o ex-escravo Paul D surge à porta  do 124. Paul D viveu com Sethe e o marido dela no Kentucky. Na noite da fuga, foi apanhado e levado para um campo de trabalhos forçados como punição. Nunca esqueceu a mulher do amigo e procurou-a durante anos. É com a chegada deste personagem que a história se começa a desenvolver. Convidado a passar uns tempos no 124, o ex-escravo depara-se com uma casa assombrada. Logo na primeira manifestação violenta do fantasma, decide enfrentá-lo, convencido de que Sethe e Denver merecem esquecer o passado e seguir em frente. O fantasma da bebé desaparece, mas será que é de forma definitiva? Será que podemos esquecer o passado? Ou será que o passado pode voltar para nos destruir? 

\”O passado nunca morre. Nem sequer é passado.\” — William Faulkner

Todas as personagens deste livro são maravilhosas e muito bem construídas. Gostei, especialmente, das personagens femininas. Nota-se que a autora lhes deu um destaque especial, para mostrar que a realidade das mulheres escravas era ainda mais cruel que a dos homens, pois eram violadas e usadas para amamentar os filhos dos brancos e não lhes era permitido viver a maternidade. Eram meras geradoras de mão de obra escrava. Além disso, quero realçar a personagem de Denver, que, apesar de nunca ter sido escrava, cresceu agrilhoada a uma sociedade racista e a uma realidade castradora acentuando a ideia de que estas pessoas continuaram e ainda continuam sem liberdade. A escrita de Toni Morrison pode ser confusa ao início,  porque está constantemente a voltar ao passado, mas é muito visual e sentida. Adorei esta obra e recomendo-a vivamente.

\”Aqui, neste lugar, somos carne; carne que chora, que ri; carne que dança descalça na relva. Amem-na. Amem-na muito. Mais além eles não amam a vossa carne. Desprezam-na. Não amam os vossos olhos; preferem arrancá-los. Também não amam a pele das vossas costas. Mais além chicoteam-na. E, oh meu povo, não amam as vossas mãos. Apenas as usam, prendem, amarram, cortam e esvaziam. Amem as vossas mãos! Amem-nas. Ergam-nas e beijem-nas. Toquem os outros com elas, acariciem-nas, passem-nas pelo rosto, porque eles também não as amam. Vocês é que têm de as amar, vocês! E não, também não estão apaixonados pelas vossas bocas. Além, lá fora, fazem com que elas rebentem e voltem a rebentar. Não prestarão atenção àquilo que delas sair. Não ouviram o que vocês gritam com elas. Arrancaram das vossas mãos aquilo que colocarem dentro delas para vos alimentar e em vez disso dar-vos-ão restos.\”

Trailer da adaptação cinematográfica de 1998 deste romance de Toni Morrison, realizada por Jonathan Demme, com Oprah Winfrey e Danny Glover no elenco:

Foto: Toni Morrison por Richard Schroeder

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Sobre a autora:
Nasceu em 1931, em Ohio, nos Estados Unidos. Formada em Letras pela Howard University, Toni Morrison estreou-se como romancista, em 1970, com “O Olho Mais Azul”. Em 1975, foi indicada para o National Book Award com “Sula” (1973), e, quatro anos depois, venceu o National Book Critics Circle com “Song of Salomon” (1977). No ano de 1981, publicou “Tar Baby”. “Beloved” (1987) valeu-lhe o prémio Pulitzer de Ficção, logo no ano seguinte. Ainda antes de receber a maior distinção da sua carreira, publicou “Jazz”, em 1992. Em 1993, foi a primeira escritora negra a receber o prémio Nobel de Literatura. Depois do prestigio reforçado, escreveu “Paraíso” (1999), “The Big Box” (2002), “Book of Mean People”, sendo que estes dois são literatura infantil e, mais um romance, “Love” (2003). Três anos depois, terminou a sua carreira de professora de humanidades na Universidade de Princeton. Ainda assim, deu-nos mais histórias, nomeadamente “A Dádiva” (2008), “A Nossa Casa é onde está o Coração” (2012). Nesse mesmo ano, recebeu, das mãos do Presidente Barack Obama, a Medalha Presidencial da Liberdade, a maior condecoração civil dos Estados Unidos da América. “Deus Ajude a Criança” surgiu em 2015. Por fim, mas não menos importante, a autora escreveu, contos, peças de teatro, livros de não ficção. Faleceu a 5 de Agosto de 2019, em Nova Iorque.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Beloved”, de Toni Morrison (Editorial Presença, Wook):
https://www.wook.pt/livro/beloved-toni-morrison/22007422

Leitores que residem no Brasil:
“Amada”, de Toni Morrison (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/…/ddab5fa4-9645-4d90-8d23-bbc8f…

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Boas leituras!

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