Quando as pessoas não percebem a diferença entre ficção e a realidade…

A meu ver, a escrita é algo muito mais profundo e vai muito mais além do que apenas o talento. Na minha opinião, a literatura, como arte que é, permite que as pessoas possam ter diferentes interpretações sobre o que leram e como uma obra pode mudar, ou não, a forma como observam o mundo. Pessoalmente, acho que a literatura tem que incomodar, tem que nos fazer refletir, tem que despertar a nossa curiosidade. 

Infelizmente, nos dias que correm, ainda existem pessoas que não percebem que existem diferenças entre ficção e a realidade. Por um autor levantar certos e determinados temas e/ou questões, através daquilo que escreve, sobretudo, quando aborda temas que, muitas vezes, ainda são vistos como tabus pela sociedade, não quer dizer necessariamente que os defenda, a nível pessoal.

Adicionalmente, considero a literatura como um meio que nos permite alargar horizontes. Obviamente, nem todos vão concordar com o nosso ponto de vista. Ainda assim, acho que o respeito pelo trabalho de quem escreve, que tem a sua quota de liberdade como todos nós, é fundamental.

Se há coisa que me choca e faz-me sentir revoltado é quando vejo uma livraria, com o nome GoodBooks, de origem portuguesa, a censurar autores portugueses, como o Pedro Cipriano, que lançou um romance chamado \”A Menina dos Doces\”, através do trabalho cuidado, extenso e de qualidade elevada da Edições Velha Lenda, em que a editora (pessoa) que a dirige, é uma profissional de excelência. Digo mais, por conhecer esse trabalho, de perto, sei que nem o autor Pedro Cipriano, nem a casa editorial que o publicou, editaria um livro em que o texto estivesse repleto de traços de misóginia, como este livro foi acusado, de forma injusta. É vital dizer que foi uma atitude desta livraria específica. As livrarias portuguesas, no geral, não têm estes comportamentos.

Outro traço que quero realçar é o facto de que, no momento em que a editora tentou apresentar o seu ponto de vista, de forma educada, juntamente com outras pessoas, esses comentários realizados na publicação que gerou esta situação foram eliminados.

Considero essa atitude algo completamente condenável, visto que nunca vi outros livros que trazem temas semelhantes serem censurados, de forma tão violenta, em Portugal, em pleno século XXI. A titulo de exemplo, posso mencionar dois exemplos: \”Apneia\”, da autora portuguesa Tânia Ganho, que aborda os temas da violência doméstica, alienação parental, relacionamento abusivo ou, ainda, o livro \”Minha Sombria Vanessa\”, de Kate Elizabeth Russell, que para além dos assuntos mencionados, carrega o tema da pedofília. Estas são 2 obras de ficção que possuem pontos em comum com a obra do Pedro Cipriano e que não sofreram este tipo de ataques. Naturalmente, poderia dar mais exemplos de obras com essse registo.

Qualquer autor é livre de escrever sobre qualquer assunto, especialmente, quando se documenta com base em fontes credíveis e, mesmo que ficcione algumas das coisas que narra, acho que tem esse direito. Afinal, a imaginação é algo que estará sempre atrelado ao seu trabalho como autor, como artista das palavras. Por esse motivo, quero reforçar que o facto de ficcionar não quer dizer, de todo, que ele está a romantizar assuntos demasiado sérios.

Neste caso, o autor criou uma história ,inspirada em acontecimentos reais, e quando fala sobre alguns dos temas já descritos, fá-lo com a intenção de deixar alertas e nunca com uma atitude de os suavizar. 

Por fim, quero dizer que não era nascido em 1974 mas, pelo que aprendi e pelo que vi em vários documentários, este tipo de censura que foi feita a uma peça de ficção, mostra que, por vezes, sinto que estamos a regredir e a boicotar a liberdade do ser humano. Aceito que todos têm direito à liberdade de pensamento e de expressão, desde que o façam de forma respeitosa e construtiva.

Sobre o autor:
Pedro Cipriano nasceu em 1986 e é natural de Vagos. Doutorado em Ciências Naturais, vertente de Física de Partículas, passou vários anos como cientista associado ao CERN. Atualmente, trabalha na Forging AI, uma empresa do ramo aeroespacial portuguesa, ajudando a proteger a floresta e a reduzir o desperdício alimentar. Nos tempos livres pratica Haidong Gumdo e Capoeira. Em 2014, criou a Editorial Divergência, projeto editorial especializado na ficção especulativa. Seguiram-se as Edições Viriato em 2016 e a Trebaruna em 2018. É também fundador da Convergência e do Projeto Foco, uma loja online dedicada à literatura e banda desenhada na área do fantástico e ficção científica, e um provedor de serviços de edição, respetivamente. Em 2014, publicou o seu primeiro livro, \”O Caderno Vermelho\”, que se encontra esgotado. \”As Nuvens de Hamburgo\”, publicado em 2017, ganhou o Grande Prémio Adamastor de Literatura Fantástica Portuguesa 2018 e o seu conto, \”A Aranha\”, publicado em 2018 na antologia \”Steampunk Internacional\”, venceu o Prémio Adamastor de Ficção Fantástica em Conto 2018. Já em 2020, publicou o seu mais recente romance, \”A Menina dos Doces\”.É autor de dezenas de contos e ensaios, tendo participado em várias antologias, bandas desenhadas, revistas, blogues e jornais. Alguns dos seus trabalhos foram traduzidos para Inglês, Finlandês e Filipino. Já foi orador em vários eventos e convenções em Portugal, França, Bélgica, Espanha e Irlanda.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“A Menina dos Doces”, de Pedro Cipriano (Edições Velha Lenda, Wook):
https://www.wook.pt/livro/a-menina-dos-doces-pedro-cipriano/24349997

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Boas leituras!

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