“O monte dos vendavais”, de Emily Brontë

Neste novo texto de opinião, trago-vos a minha opinião sobre um dos maiores clássicos da literatura inglesa produzida no século XIX, \”O Monte dos Vendavais\”, de Emily Brontë, que li nesta edição de 432 páginas, com tradução de Paulo Faria, que saiu pela Relógio D\’Água.

\”De que serviria a minha criação, se eu estivesse totalmente contida em mim? As minhas grandes amarguras neste mundo foram as amarguras de Heathcliff, e observei e senti cada uma delas desde o seu início; a minha grande preocupação na vida é ele. Se tudo o resto perecesse e ele perdurasse, eu continuaria, ainda assim a existir; e, se tudo o resto perdurasse e ele fosse aniquilado, o universo passaria a ser para mim um lugar absolutamente estranho. Eu não me veria como parte desse universo.\” — Emily Brontë

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Fonte: Relógio D\’Água Editores

\”O Monte dos Vendavais\”, de Emily Brontë, é um romance que se enquadra no ultrarromantismo, uma corrente literária com gosto pela melancolia e pela morbidez. Foi publicado, pela primeira vez, em 1847, sob o pseudónimo masculino de Ellis Bell. Enquanto leitores, sabemos o quanto os escritores se alimentam das suas experiências pessoais para a construção das suas obras e neste caso em particular esse conceito é levado ao extremo. Não podemos, simplesmente, dizer que a autora se inspirou nas suas vivências para escrever o livro, mas sim que livro e autora são um só. Não podemos, portanto, falar de \”Wuthering Heights\” sem falar da vida de Emily Brontë. Sem falar do seu mundo envolvente e do seu mundo interior.

Emily Brontë nasceu em 1818, em Thornton, no Reino Unido. Filha do reverendo irlandês Patrick Brontë e de Maria Branwell e irmã das também célebres escritoras Charlotte Brontë e Anne Brontë e de Patrick Branwell. Teve ainda mais duas irmãs, que morreram, precocemente, de tuberculose. 

A casa onde a família viveu mais tempo  era a casa paroquial da vila de Haworth, construída de frente para o cemitério. Foi nesta casa que Emily começou a escrever em conjunto com as irmãs e irmão. A sua escrita teve inspiração nas lendas e baladas irlandesas e nas histórias contadas pela empregada da casa. Eram histórias que falavam de fadas, parecidas com as lendas de mouras encantadas em Portugal. Para além destas influências, teve acesso a leituras como Lord Byron, Mary Shelley e Walter Scott. 

Quando a revolução industrial chegou à Vila de Haworth, as fábricas alteraram a paisagem, onde outrora se avistavam as fadas nas noites de luar. Paralelamente à forte industrialização, a região era assolada por inúmeras epidemias: A esperança média de vida era de apenas 25 anos e em cada cem crianças nascidas, apenas quarenta chegava a completar um ano. Ninguém conseguia entender o porquê de tantas epidemias e de uma tão grande mortandade. Quando foram investigar descobriram que o problema estava diante do nariz da família Brontë, no cemitério em frente à casa paroquial: devido à falta de saneamento e com a agravante das intempéries típicas daquele lugar, os corpos em decomposição haviam contaminado a água. Foi neste ambiente mórbido que Emily Brontë cresceu e à medida que ela crescia, nascia e crescia \”O Monte dos Vendavais\”, no mais íntimo do seu ser. 

Quando foi revelada a verdadeira autoria do romance, todos ficaram incrédulos. Para a reservada e patriarcal sociedade vitoriana era impossível que uma mulher, filha de um reverendo, que viveu toda a vida reclusa entre as charnecas de Haworth, tivesse escrito uma história de amor tão sombria. Muito se especulou em relação à inspiração de \” O Monte dos Vendavais\” : O clima de hostilidade que permeia todo o livro lembra o caráter rude das gentes de Haworth. O amor de Catherine e Heathcliff terá a ver com o amor de infância de Emily por Robert Clayton. A personagem de Heathcliff terá sido inspirada em Jonh Sharpe, um homem que se vingou cruelmente da família adotiva que o hostilizara. 

A conclusão a que chegamos é que a autora e a sua obra se formaram num meio em que a degradação do estilo de vida acompanha a degradação do caráter do povo de Haworth e a dissolução da natureza acompanha a dissolução da morte. Vida, morte e natureza tornam-se uma unidade em conjunto com Emily Brontë e a sua obra.

A narrativa de \”O Monte dos Vendavais\” inicia-se em 1801, no momento em que Mr. Lockwood se perde numa tempestade e vai parar à casa do seu senhorio, Mr. Heathcliff, onde é hostilizado por todos que lá moram  Acaba por pernoitar na casa, mas fica tão horrorizado com o tratamento que recebe, que não consegue adormecer. Até que encontra uns livros e adormece a ler os rascunhos de uma tal Catherine. Acorda com um barulho na janela, que atribuí a um galho de árvore e quando coloca a mão de fora para cortá-lo é agarrado por uma mãozinha gelada. Uma voz de mulher pede-lhe que a deixe entrar. Assustado, grita chamando a atenção do dono da casa e conta-lhe o que acaba de acontecer. Quande Mr. Lockwood abandona o quarto ouve Heathcliff chorar desesperadamente. Neste ponto o romance de Emily quebra com o cânone do romance vitoriano, na medida em que nos apresenta personagens terríveis e ao mesmo tempo capazes de um grande arrebatamento de amor.

Mr. Lockwood regressa bem cedo a casa, e sabendo que a sua governanta havia trabalhado no Monte dos Vendavais, pede-lhe que lhe conte a história de Chaterine e Heathcliff. É neste momento que a história, até aqui contada por Mr. Lockwood, muda de narrador e recua 18 anos no tempo. Esta narrativa a duas vozes, que por sua vez reproduzem perfeitamente outras vozes, inclusive o dialeto quase indecifrável das zonas mais rurais de inglaterra, apresenta-nos um romance polifônico. A questão da linguagem é igualmente importante, uma vez que tem o papel de didivir estratos sociais, ou seja, quanto mais pobre é a personagem mais a sua linguagem se aproxima do dialeto do Yorkshire e quanto mais rica é a personagem mais a sua linguagem se aproxima do inglês canônico.

Com Mrs. Dean vamos recuar até ao dia em que o pai de Catherine, Mr. Hearnshaw, regressa de viagem trazendo consigo um menino de rua, que decidira adotar.  Catherine simpatiza logo com Heathcliff, mas o seu irmão, Hindley, morre de ciumes daquele que lhe veio roubar a atenção do pai. Quando o patriarca da família morre, Heathcliff fica à mercê da crueldade de Hindley, que faz dele um escravo. O nosso protagonista vai ficando embrutecido e guarda dentro de si um rancor doentio.

Heathcliff e Catherine passam a infância e parte da adolescência alheios as regras da sociedade. Até ao dia em que Catherine conhece Edgar Linton e decide casar-se com ele. Heathcliff foge e regressa algum tempo depois rico e pronto a vingar-se.

É importante salientar que a personagem de Heathcliff é extremamente misteriosa. Ninguém sabe nada da sua vida até ser adotado e ninguém sabe como fez fortuna enquanto andou desaparecido. A autora criou uma personagem, que tal como ela, não tem biografia. Emily morreu aos 30 anos solteira e sem filhos. Para além disso, não socializava com ninguém, ou seja, da sua boca ninguém sabia nada do que lhe ia na cabeça e na alma. A relação mais intima que tinha era com as charnecas de Haworth, onde gostava de dar longos passeios, mas essa relação com a natureza é demasiado interior para ser reveladora.

Existe uma teoria de interpretação psicológica da história, segundo a qual Heathcliff representa o id, Catherine, o ego e Edgar Linton, o superego. Heathcliff rege-se apenas por impulsos, Catherine testa o id contra a realidade e apercebe-se das vantagens de casar com um homem rico. O seu objetivo é casar com Edgar Linton e que este aceite a sua amizade com Heathcliff. Quando constata que isso não é possível a sua personalidade fragmenta-se, o que resulta na sua morte. Edgar representa os valores morais da sociedade e a repressão de qualquer impulso. Na segunda parte do livro, a filha de Catherine representa a continuação da mãe. Cathy consegue unir id, ego e superego.

Este livro apresenta-nos ainda uma teoria segundo a qual a criação determina o caráter das pessoas. Por mais que uma alma seja nobre, se receber maus tratos fica embrutecida e por mais que uma pessoa seja limitada, se tiver uma boa criação consegue desenvolver as suas capacidades. É certo que a nossa criação tem um papel preponderante mas até que ponto esta teoria está correta? Afinal de contas, o que é que prevalece? A educação ou a essência das pessoas? 

Outra questão que Emily aborda é a dos direitos das mulheres naquele tempo. Se lerem o livro, vão perceber que muitas situações só aconteceram devido ao enquadramento legal injusto da época.

Ao contrário do típico romance vitoriano, em que por mais que as situações se compliquem acabam por resolver-se, aqui só paramos para respirar no último parágrafo. Apesar de a leitura ser viciante e não conseguirmos parar de ler até terminar, o final não deixa de ser um alívio. Li este clássico na edição da Relógio D\’Água, que tem textos de apoio maravilhosos e que colocaram em mim o desejo de fazer uma viagem à vila de Haworth, conhecer a casa da família Brontė, ir a taberna Touro Negro e passear pelas charnecas. Hoje em dia, as histórias de fadas foram substituídas pela história da família Brontė. Dizem os habitantes de Haworth que ainda hoje as irmãs Bronte vagueiam pelos montes. É mesmo o ambiente ideal para eu ir passear a minha loucura.

Foto: Emily Brontë por J.P.Humbert Auctioneers

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Sobre a autora:
Nasceu a 30 de julho de 1818, em Thornton, no Yorkshire, e faleceu em Haworth, vítima de tuberculose, a 19 de Dezembro de 1848, com apenas 30 anos. Filha de Patrick Brontë, nomeado pároco vitalício em Haworth, Emily Brontë foi criada com os seus irmãos Charlotte, Anne e Patrick Branwell pela tia, Elizabeth Branwell. A família constituía uma sociedade fechada e isolada, e os quatro irmãos sentem desde a infância motivação para o estudo e para a composição literária. Escreveram contos, histórias fantásticas, poemas, jornais, folhetins e editaram uma revista mensal. Emily Brontë foi a autora do ciclo de Gondal, cuja pátria imaginária inspirou alguns dos seus poemas mais arrebatados. Emily tentou ganhar a vida como professora, mas uma saúde precária obrigou-a a desistir. É através de \”O Monte dos Vendavais\”, o seu único romance, que permanece na nossa memória: Uma história empolgante que é e uma das obras mais intensas da língua inglesa.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
\”O Monte dos Vendavais\”, de Emily Brontë (Relógio D’Água, Wook):
https://www.wook.pt/livro/o-monte-dos-vendavais-emily-bronte/17436879

Leitores residentes no Brasil:
\”O Morro dos Ventos Uivantes\”, de Emily Brontë (Editora Martin Claret, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/o-morro-dos-ventos-uivantes-1-ed-2019/artigo/76113d49-3ada-4ddb-b26a-907d0d6f0596

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Boas leituras!

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