Hoje, completei a minha primeira leitura de uma obra da literatura russa. Fiódor Dostoievski foi o meu guia, ao longo de 136 páginas, através do meu exemplar de “Memórias do Subterrâneo”, um livro editado pela Relógio D’Água e traduzido, directamente do russo, por António Pescada. Esta edição possui notas de rodapé, adicionadas, igualmente, por ele, o que, na minha opinião, é sempre uma mais-valia, sobretudo, numa obra tão densa.
A obra sobre a qual reflito, hoje, chama-se “Memórias do Subterrâneo” e foi publicada, pela primeira vez, em 1864, por Fiódor Dostoievski.
Com base em alguns textos que li sobre esta novela, marcadamente, existencialista, o autor inaugurou, na época, uma nova fase da sua carreira literária.
Por um lado, Jean Paul Sartre classificou Dostoiévski como o ponto de partida do movimento filosófico conhecido como existencialismo, principalmente, pelas questões apresentadas no livro “Os Irmãos Karamázov”, o seu último romance. Para justificar essa ideia, ele realça: “Dostoievski escreveu: — ‘Se Deus não existe, tudo é permitido’. Eis o ponto de partida do existencialismo.”
Por outro, Walter Kaufmann, um célebre poeta, filósofo e tradutor alemão, que viveu no século XX, defende que Dostoiévski foi o principal precursor do existencialismo, devido a este livro, uma vez que, para o escritor russo, a guerra seria a revolta do povo contra a ideia de que a razão orienta tudo
Se olharmos, atentamente, para a linha cronológica de publicação, entre a publicação de “Gente Pobre”, o seu primeiro romance, em 1846, e a publicação destas “Memórias”, passam, aproximadamente, 22 anos, o que, na minha opinião, prova que, muito provavelmente, tendo em conta, a frenética produção de romances, novelas, contos e até livros de ficção, Fiódor acabava de alcançar a maturidade, enquanto escritor.
Nesses pouco mais de 20 anos, surgiram, por exemplo, “O Duplo” (1846), “A Senhoria” (1847), “Noites Brancas” (1848), “Coração Fraco” (1948), Netochka Nezvanova (1849), “Humilhados e Ofendidos” (1861) e “Recordações da Casa Morta” (1862).
Certamente, foi devido ao contacto com outros autores russos e, ainda, com obras de Byron, Victor Hugo e William Shakespeare, enquanto frequentava a Escola Militar de Engenharia, em São Petersburgo, juntamente, com vivências pessoais, bastante trágicas, nomeadamente, o assassinato do seu pai, que era médico militar, a morte da sua mãe, vítima de Tuberculose, sem esquecer, inclusivé, a morte da sua esposa, precisamente, na altura que escrevia esta obra e, obviamente, as quase duas décadas que trabalhou num campo de trabalhos forçados, na Sibéria, por ter sido suspeito de participar no Círculo de Petrachevski, um grupo revolucionário de intelectuais russos que discutiam política. Com ele, mais 15 membros foram condenados à pena de morte. Por tudo isto, Fiódor imprimiu em muitas das suas obras, uma incansável preocupação com as causas sociais.
Para além disso, já se começam a notar os traços de uma das suas maiores qualidades, que, ainda hoje, o tornam num dos autores mais lidos em todo o mundo: a dimensão psicológica e humana que ele atribui às suas personagens. Esse traço verdadeiramente único que, um par de anos depois, mais precisamente, em 1866, atingiria um dos seus maiores expoentes, com a publicação da história do jovem Raskólnikov que cometeu o seu “crime” e, consequentemente, sofreu o seu inevitável “castigo”.
Com efeito, voltando ao tema inicial, nesta narrativa percebe-se, imediatamente, ao ler as primeiras páginas, a complexidade e a diversidade de temas e ideias que ele aborda, através da introdução de um narrador que é, igualmente, uma personagem, propositadamente, mantida no anonimato, visto que não quer ser lida por ninguém.
Em termos de estrutura, “Memórias do Subterrâneo” divide-se em duas partes:
Na primeira parte, temos um fragmento chamado “Subterrâneo”. No entanto, este título é usado, de forma metafórica, dado que, na verdade, Dostoievski quer referir-se ao nível da consciência humana. Para isso, ele apresenta-nos “o homem do subterrâneo”. um homem de 40 anos, solitário, contraditório e que vive, claramente, mergulhado num negativismo desconcertante. De facto, ele denuncia, prontamente, na primeira frase, o seu estado de espírito:
“Eu sou um homem doente… Sou um homem mau. Sou um homem nada atraente.” – pág. 9
E, a partir daqui, entramos num extenso monólogo, escrito em primeira pessoa, onde ele vai, aos poucos, despejando informações sobre o seu passado, enquanto ex-funcionário público, os seus relacionamentos, as suas frustrações, as suas ideias e a sua visão sobre a sociedade russa do século XIX, para ser mais preciso, a que habita a cidade de São Petersburgo, sobre a ciência, sobre a filosofia. Por diversas vezes e, de forma veemente, assume-se como um homem inteligente e que está acima de todos os outros:
“Um homem inteligente do século dezanove deve e está, moralmente, obrigado a ser, de preferência, uma criatura sem carácter; Um homem com carácter, um homem público, é uma criatura essencialmente limitada.” – Pág. 11
Mudou-se para São Petersburgo, após ter recebido uma herança e instalou-se “no seu canto”, descendo ao degrau mais baixo, justamente, para retratar, como poucos, toda a sociedade russa: os aristocratas, os funcionários públicos, os burgueses, o clero, os militares, pois, todos, sem excepção, escondiam parcelas degeneradas desse homem do Séc. XIX.
Nestes dois exemplos, constata-se a genialidade de Dostoievski que, apesar de nos oferecer um personagem com qual, dificilmente, poderemos simpatizar, entrega-nos uma personagem que, por vezes, através de algumas das suas observações, permite que possamos criar empatia.
Na segunda parte, intitulada “Por causa da neve húmida”, há três episódios que relatam, concretamente, a forma como o nosso anti-herói é encurralado socialmente pelos discursos e ações de uma sociedade despótica:
“De vez em quando, um pensamento trespassava-me o coração com uma dor profunda e venenosa: que passariam dez anos, vinte anos, quarenta anos, e que mesmo dentro de quarenta anos, eu recordaria, com repugnância e humilhação, aqueles momentos mais ignóbeis, mais ridículos e horríveis de toda a minha vida” – pág. 80
Desta forma, começamos a aperceber-nos, lentamente, de que todas as ideias, por ele, defendidas no fragmento anterior, são cruelmente verdadeiras. E assim, talvez, consigamos entender o porquê de tanto negativismo.
Ainda assim, volto a salientar que a concepção literária de Fiódor Dostoievski, no que toca à construção psicológica e humanista das suas personagens, maioritariamente, envolvidas em enredos que demonstram as nossas fraquezas, enquanto seres humanos, e privilegiam a redenção, através da dor e do sofrimento, é, realmente incontestável, não havendo nenhum outro autor que se lhe compare.
Desde a época em que foi publicada, esta novela da literatura russa tem recebido os mais rasgados elogios, tanto pela sua excepcional qualidade literária, quer pela escrita, quer por todas as questões que ela levanta, todas elas, relacionadas com a condição humana, como é habitual, nas obras do autor ou, ainda pela intemporalidade da mesma, uma vez que permanece actual.
Aliás. a importância desta obra é tão grande que já influenciou outras obras, editadas, posteriormente, e inspirou, pelo menos, 4 personagens literárias: Nikolai Levin, personagem do romance “Anna Karenina”, de Liev Tolstoi, a personagem Mersault, do romance “O Estrangeiro”, de Albert Camus; Gregor Samsa, personagem do romance “A Metamorfose”, de Franz Kafka; e Moses Herzog, personagem do romance “Herzog”, de Saul Bellow.
Do outro lado do Oceano Atlântico, este clássico da terra dos czares foi publicado sob o título de “Memórias do Subsolo”, numa edição traduzida pelo ensaísta e tradutor Boris Schnaiderman, directamente do russo para o português, a pedido da Editora 34.
Mais uma das minhas leituras favoritas de 2018, como já seria de esperar. Por isso, foi uma excelente aposta, esta minha primeira incursão pela literatura russa. Sem qualquer margem para dúvidas, quero voltar a este autor e ler, nomeadamente, “Crime e Castigo” e “Os Irmãos Karamázov”.
Boas leituras!