“Devias ter-te ido embora”, de Daniel Kehlmann

Quem diria que este thriller de Daniel Kehlmann, com apenas 96 páginas. publicado pela Bertrand Editora, iria deixar-me tão envolvido e alucinado com uma narrativa escrita em forma de diário? Definitivamente, nunca tinha lido nada assim. Esta novela, a meu ver, é um exercício impressionante que nos faz questionar quais são as fronteiras entre a realidade e a loucura.

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Foto: Bertrand Editora

Daniel Kehlmann faz-nos viajar até aos Alpes para nos narrar uma história que, à primeira vista, pode ser vista como banal mas, à medida que vamos virando as páginas, ela começa a tornar-se viciante.

Através de um narrador sem nome, que é guionista e que está a escrever a continuação do seu filme de maior sucesso, conhecemos Susanna, a sua mulher, e Esther, a filha de ambos que tem 4 anos, depois de eles se mudarem para uma casa bonita e minimalista, alugada, através do Airbnb, e situada nas montanhas.

Aparentemente, este seria um período de tempo que englobaria, por um lado, férias em família e, por outro, um retiro criativo para o guionista.

Escrito num estilo que combina uma narrativa contada em forma de diário, encontramos fragmentos da sua vida pessoal e, também,  partes do guião que ele escreve para a continuidade do enredo que deu origem ao filme \”Melhores Amigas 1\”. Neste novo guião, ele retrata a relação entre Jana e Ella, duas jovens amigas.

Tudo parceria normal até que, a partir de um determinado monento, ele repara que coisas estranhas se passam na casa, nomeadamente. as divisões da casa mudam de lugar e, no seu caderno, começam a aparecer palavras que não foram escritas por si.

Entretanto, este ambiente propício ao isolamento e à claustrofobia, obriga-o a ir até à aldeia para comprar provisões, Quando entra numa loja, acaba por ser brindado com uma estranha pergunta. Rla surge depois de o dono saber que está a passar férias naquela casa: “Já aconteceu alguma coisa?”. Após o pagamento da praxe, o dono oferece-lhe um transferidor e aconselha-o: “Experimente o ângulo recto”.

Elogiado por autores como Ian McEwan e Jonathan Franzen, este livro polifónico, no limite, percorre o caminho entre o real e o fantástico, entre os mundos exterior e interior do ser humano, entre a consciência e a pura loucura. Além disso, promove um diálogo do autor com o próprio acto da escrita:

O Sol tinha acabado de sair de trás das nuvens, de modo que agora o céu se dilui numa luminosidade dolorosa, cintilante, magnífica. Ou isto serão demasiadas metáforas? O Sol não sai de trás de nada, o vento afasta as nuvens e, como é óbvio, o céu não se dilui de modo nenhum. Mas numa luminosidade dolorosa, cintilante, magnífica não é mau.” — Daniel Kehlmann

Em simultâneo, questiona a ideia de amor, família e relacionamentos:

Amo-a, e não gostaria de ter uma vida diferente. Porque estamos constantemente a discutir?— Daniel Kehlmann

Sem qualquer dúvida, apesar de este ser um livro curto de leitura rápida, o narrador coloca-se num diálogo com o mais profundo do seu ser em frente a um espelho e isso fá-lo questionar as opções tomadas, onde pela escrita e num exercício de deformação da linha temporal, possa avisar-se a si mesmo sobre os perigos que a existência reserva:

\”Mas talvez deste modo o possa avisar, ou seja, a mim, ou seja, àquele que eu era ainda há pouco; talvez lhe possa dizer através do tempo ondulante: Vai-te embora. Gritar-lhe: Vai-te embora, antes que seja demasiado tarde, murmurar, berrar, que não se preocupe com o filme, mas que abra os olhos e veja onde está. De algum modo, conseguir alcançá-lo, até que me oiça, até que me leia, até que veja, até que compreenda.” — Daniel Kehlmann

Todavia, ele vê que as palvras, depois de verem revelados todos os seus truques e artifícios, mostram-se insuficientes nesta tentativa de preservação da memória, quando posta diante da loucura e da incerteza:

Escreve isso para te lembrares, para nunca poderes dizer que foi pura imaginação. Mas enquanto escrevo, penso que deve ter sido imaginação. (…) Palavras. Elas não captam como as coisas são na realidade.”

Por fim, um livro que me fez ficar com vontade de ler os outros livros do autor, sobrnetudo, pela escrita enxuta, incisiva e que dá, a esta narrativa, um toque único.

Foto: Daniel Kehlmann por Vincent Tullo

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Sobre o autor:
Nasceu em Munique em 1975. Aos seis anos, mudou-se com a família para Viena, onde estudou Filosofia e Estudos Alemães. É autor de um dos maiores sucessos literários em língua alemã de sempre, \”A Medida do Mundo\”, um bestseller internacional traduzido para mais de quarenta línguas e que foi também adaptado ao cinema. Depois dele, surgiu \”Fama – Romance em Nove Histórias\”. Em Portugal, estes dois livros foram editados pela Editorial Presença em 2007 e 2010, respetivamente. Nove anos depois, a Bertrand Edtora publicou \”Devias Ter-te Ido Embora\”. Quanto a \”Tyll\”, o seu romance mais recente, que foi finalista do International Booker Prize deste ano, deve ser publicado em Setembro pela Bertrand Editora. Os seus livros conquistaram diversos prémios literários, entre os quais, o prémio Thomas Mann, o Die Welt, o Candide, o Kleist e o Doderer.

Sugestões de Leitura:

Leitores que residem em Portugal:
“Devias Ter-te Ido Embora”, de Daniel Kehlmann (Bertrand EditoraWook):
https://www.wook.pt/livro/devias-ter-te-ido-embora-daniel-kehlmann/22068039
“Fama – Romance em Nove Histórias”, de Daniel Kehlmann (Editorial Presença, Wook):
https://www.wook.pt/livro/fama-romance-em-nove-historias-daniel-kehlmann/9859488

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Boas leituras!

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