Desconstruindo Saramago, com Ana Ribeiro: #3 – \”Memorial do Covento\”

Dando continuidade do desafio de ler todas as obras do Nobel português de literatura, juntamente com o Luís Moura, neste meu novo texto de opinião, venho falar – vos de “Memorial do Convento” que, para muitos, é obra prima de José Saramago, publicada pela primeira vez em 1982.

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Fonte: Porto Editora

“Memorial do Convento” é um romance histórico que nos conta a história da construção do Convento de Mafra, no início do século XVIII, durante o reinado de D. João V. Este rei não foi uma personalidade especialmente brilhante, simplesmente, teve sorte de ser rei de Portugal, no período em que o país recebeu mais ouro e diamantes vindos do Brasil. 

Com esta verdadeira fortuna, Portugal conseguiu equilibrar a sua economia, após um século XVII  conturbado em que  o país esteve seis décadas sob o domínio espanhol e, além disso, teve que lutar pela sua independência numa guerra que durou 28 anos.

Contudo, devido à natureza megalómana do nosso monarca, e à ambição desmesurada dos exploradores de ouro e diamantes no Brasil, rapidamente se começou a ver o fundo ao saco. O Palácio Nacional de Mafra transforma-se, ao longo dos tempos, no maior símbolo de um estado perdulário e de um povo sacrificado pelos caprichos de grandeza da coroa portuguesa. 

Se, por um lado, a História conta  que D. João V mandou construir um convento, na vila de Mafra, revela quem foi o arquiteto, por outro, Saramago narra a história do povo que colocou pedra sobre pedra à custa de muito sangue, suor e lágrimas e, por vezes, até da própria vida. 

\”Tudo quanto é nome de homem vai aqui, tudo quanto é vida também, sobretudo se atribulada, principalmente se miserável, já que não podemos falar – lhes das vidas por tantas serem, ao menos deixemos os nomes escritos, é essa a nossa obrigação, só para isso escrevemos torná – los imortais, pois aí ficam se de nós depende, Alcino, Brás, Cristovão, Daniel, Egas, Firmino, Geraldo, Horácio, Isidro, Juvino, Luís, Marcolino, Nicanor, Onofre, Paulo, Quitério, Rufino, Sebastião, Tadeu, Ubaldo, Valério, Xavier, Zacarias, uma letra de cada um para ficarem todos representados.\” — José Saramago

Todavia, em “Memorial do Convento”, não acompanhamos, somente, a construção do convento de Mafra mas, também, a construção da passarola, uma máquina voadora criada pelo padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, uma figura histórica sobre a qual Saramago lança o encantamento da ficção.

A passarola será construída pelo padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, com a ajuda de Blimunda Sete Luas e Baltasar Sete Sóis, representando o sonho de  um homem realizado com entreajuda e amizade pelos três. Os três representarão uma espécie de trindade terrestre ao sonhar o mesmo sonho de levantar vôo na passarola, cuja construção será alimentada, paralelamente, pelo violino de Domenico Scarlatti. 

\”Esses três quando estiver Baltazar, têm razões do coração que os governam, e, em tantas noites passadas, uma terá havido, pelo menos, em que sonharam o mesmo sonho, viram a máquina de voar batendo as asas, viram o sol explodindo em luz maior, e o âmbar atraindo o éter, o éter atraindo o íman, o íman atraindo o ferro.\” — José Saramago

Para fazer a passarola voar será preciso magnetismo e um pouco de misticismo. É neste misticismo que entra Blimunda, uma vidente que tem o poder de ver o interior das pessoas quando está em jejum, e Baltazar, um ex-soldado, que perdeu a mão esquerda na guerra, para representar a força de trabalho, essencial para fazer girar o mundo e, ainda assim, desvalorizada pelos grandes.

Estes dois protagonistas conhecem – se num auto de fé, onde a mãe de Blimunda é condenada ao degredo. No meio da multidão, a mãe de Blimunda pergunta – lhe, telepaticamente, quem é o homem que está ao seu lado e Blimunda dirigindo – se a Baltazar pergunta – lhe: \”Que nome é o seu?\”. 

A partir daqui, Baltazar segue Blimunda instintivamente até à sua casa e eles acabam por se tornar inseparáveis. Apesar de receberem a benção do padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão, nunca se chegam a casar e vivem o seu amor e a sua sexualidade à margem da sociedade. Este casal representa o amor verdadeiro, uma entrega total e sem reservas.

\”Tu és Sete Sóis porque vês às claras, tu serás Sete Luas porque vês às escuras, e, assim, Blimunda, que até ai só se chamava, como sua mãe, de Jesus, ficou sendo Sete Luas, e bem batizada estava que o batismo foi de padre, não alcunha de qualquer um. Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais.\” — José Saramago

Em suma, ao longo da obra, temos a construção do convento de Mafra em paralelo com a construção da passarola. O convento de Mafra simboliza o capricho do rei realizado com muito sacrifício pelo povo e a construção da passarola representa a amizade, a criatividade e a solidariedade. A relação do rei e da rainha contrasta com a relação de Blimunda e Baltazar. O rei e a rainha vivem o casamento como um contrato com o objetivo de ter sucessão. Blimunda e Baltasar vivem um amor verdadeiro. 

Com este livro, Saramago tece uma forte crítica à igreja católica, ao poder e à sociedade A genialidade desta obra está em dar nomes e construir biografias ao povo que ergueu o convento com tanto esforço e ficou esquecido através dos tempos. Ao recontar a história pela perspetiva do povo, a força braçal que faz girar o mundo, Saramago alcançou a intemporalidade e a universalidade, que explica o seu sucesso além fronteiras, sempre atual desta obra prima.

Este livro, apesar dos três primeiros capítulos mais difíceis de ler, a meu ver, uma espécie de muralha que nos impede de entrar na história, e de algumas passagens em que Saramago se deixa levar pelo luxo das palavras, uma característica típica do barroco que procura resgatar na sua obra, tornou – se um dos meus preferidos da vida. Tentei, nesta minha opinião, não dar spoilers e omiti muitas passagens que, a mim, me deixaram com os olhos marejados de lágrimas, porque acredito sinceramente que quem lê este livro merece passar pela mesma emoção que eu. Por isso, super recomendado, \” Memorial do Convento\”.

Foto: José Saramago por Ulf Andersen

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Sobre o autor:
Nasceu. a 16 de Novembro de 1922. na aldeia de Azinhaga. Devido a dificuldades económicas, José Saramago foi obrigado a interromper os estudos secundários, tendo, a partir desse momento, exercido diversas atividades profissionais: serralheiro mecânico, desenhista, funcionário público, editor, jornalista, entre outras. O seu primeiro livro foi publicado em 1947. No entanto, só em 1976, é que passou a viver, exclusivamente, da literatura, primeiramente, como tradutor, depois, como autor. Romancista, dramaturgo, cronista e poeta, em 1998, tornou-se o primeiro autor de língua portuguesa a receber o Prémio Nobel de Literatura.

Sugestão de Leitura:

Leitores residentes em Portugal:
“Memorial do Convento”, de José Saramago (Porto Editora, Wook):
https://www.wook.pt/livro/memorial-do-convento-jose-saramago/15747444

Leitores residentes no Brasil:
“Memorial do Convento”, de José Saramago (Companhia das Letras, Livraria da Travessa):
https://www.travessa.com.br/memorial-do-convento-1-ed-2013/artigo/dd5be6bd-5d86-4ae2-a287-aa79190cff20

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Boas leituras!

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